Encontro
Encontrei, de noite, uma esfínge.
Não me fez perguntas; nada quis de mim.
As suas asas tinham marcas roxas; as olheiras
desciam pelo rosto. Peguei-lhe nos dedos; puxei-a
para um canto. Não me lembro do que
falámos; a noite descera, há muito.
NUNO JÚDICE
de Poesia reunida 1967-2000, D. Quixote
voz - Cristina Paiva
música - Manual
sonoplastia - Fernando Ladeira
desvendado - Helena Ramos
Autor
Nuno Júdice,
pepQ
Fala a preguiça
Eu gosto tanto, tanto ,tanto
de estar quieta, muito parada,
de fazer nada, coisa nenhuma,
e de fazer isso, que é não fazer
e de não estar, não ir, também.
Eu cá faço nada e todos
me dizem que faço isso muito bem.
Faço arroz de nada, pudim de nada
(que não é nada, está-se mesmo a ver)
e é tudo muito bom, delicioso,
só por não ser preciso fazer.
Eu faço nada, sou um nadador,
mas não daqueles que nadam mesmo,
O que é cansativo, tão maçador;
é que nadar, cá para mim,
tem um defeito insuportável:
aquele erre que está no fim .
E não digam que não faço nada
porque eu faço isso o mais que posso
e se não faço mais é porque mesmo nada
fazê-lo muito é uma maçada.
Não quero ir. Ainda é cedo.
Que pressa é essa? Não pode ser!
Deixem-me estar porque eu hoje tenho
bastante nada para fazer.
ÁLVARO MAGALHÃES
de O Brincador
música - Erik Satie
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
desvendado - Helena Ramos
Autor
Álvaro Magalhães,
pepQ
Poema vindo dos dias
A tua cruz senhor é pouco funcional
Não fica bem em nenhum jardim da cidade
dizem os vereadores e é verdade
E além disso os nossos olhos cívicos
ficam-se nos corpos de que nos cercaste
Saudamo-nos por fora como bons cidadãos
Submetemos os ombros ao teu peso
mas há tantos outros pesos pelo dia
E quando tu por um acaso passas
retocado pelas nossas tristes mãos
através dos pobres hábitos diários
só desfraldamos colchas e pegamos
em pétalas para te saudar
Queríamos ver-te romper na tarde
e morrem-nos as pálpebras de sono
RUY BELO
de Ruy Belo – Todos os poemas
Ed. Círculo de Leitores
voz - Cristina Paiva
música - Antonio Vivaldi
sonoplastia - Fernando Ladeira
desvendado - Raquel Vasconcelos
Brincava a criança
Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincando
E disse, Eu sou dois!
Há um a brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.
Estou por trás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu qu'ria
A volta não é essa...
O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.
E brinca comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.
FERNANDO PESSOA
de Poesia do Eu
Ed. de Richard Zenith para a Assírio e Alvim
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
desvendado - Ana Isabel Duarte
Autor
Fernando Pessoa,
pepQ
Poente
Final de dia, sereno, tropical.
Laivos rubros no azul do firmamento...
E o Sol lança um beijo maternal
Sobre a Terra – um beijo a seu contento - .
Passam negras levando o seu bornal,
Como se fossem levadas pelo vento,
E pirogas, temendo o vendaval,
Atravessam a baía num momento.
A ilha de palhotas e palmeiras,
Junto à ponte, a água em cachoeiras,
Tudo isto, para mim era fatal...
Olhava o mar cheio de ansiedade...
Ia com êle a mais triste saudade:
- A saudade de meus Pais, de Portugal.
ALVES REDOL
de Vida Ribatejana, 29 novembro 1931
voz - Cristina Paiva
música - Waldemar Bastos
sonoplastia - Fernando Ladeira
desvendado - Helena Ramos
Autor
Alves Redol,
pepQ
Eu hei-de envelhecer assim
Eu hei-de envelhecer assim,
a fugir à frente dó tempo, sem parar,
a correr atrás do tempo, sem conseguir?
Eu hei-de envelhecer assim,
a sonhar, por ofício, um mês de Abril
cada dia mais distante?
Eu hei-de envelhecer assim,
ao tilintar de telefones e telexes
sem· silêncio para a música e para amar?
Eu hei-de envelhecer assim,
a matar, com afinco, diariamente,
o poeta que em mim ainda não morreu?
Eu hei-de envelhecer assim,
neste enredo de julgamentos e notícias,
sem a mão estendida do meu filho pequeno?
Eu hei-de envelhecer assim,
o fumo das reuniões, as pastas, os papéis
- e a alma, ferida, na gaveta fechada?
Eu hei-de envelhecer assim,
a vida escoando-se, esquálida, nesta sala,
e o sol, como um pássaro, nas árvores da Avenida?
Eu hei-de envelhecer assim,
lá fora a luz da tarde, o riso das raparigas,
o crepitar da cidade,
e eu aqui dentro,
longe de mim e do meu centro,
longe do mar, longe do sol, longe do vento?
JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
de Repórter do Coração
Ed. Asa
voz - Cristina Paiva
música - Matmos
sonoplastia - Fernando Ladeira
desvendado - Ana Eustáquio
Autor
José Carlos de Vasconcelos,
pepQ
A minh'Alma fugiu...
A minh'Alma fugiu pela Torre Eiffel acima,
- A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões -
Fugiu, mas foi apanhada pela antena da T.S.F.
Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas…
(Em todo o caso que belo fim para a minha Alma!...)
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
de Poemas completos
Ed. Planeta Agostini a partir da Edição original da Assírio e Alvim
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
desvendado - Ana Isabel Duarte
Autor
Mário de Sá Carneiro,
pepQ
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