A lentidão (excerto)




(...) Quando as coisas se passam demasiado depressa, ninguém pode estar certo de nada, de nada de nada, nem sequer de si próprio (...) recordei a equação bem conhecida de um dos primeiros capítulos da matemática existencial: o grau de velocidade é directamente proporcional à intensidade do esquecimento. Desta equação, podem deduzir-se diversos corolários, por exemplo o seguinte: a nossa época abandona-se ao demónio da velocidade e é por essa razão que se esquece tão facilmente de si própria. Ora, eu prefiro inverter a afirmação e dizer: a nossa época está obcecada pelo desejo de esquecimento e é para realizar esse desejo que se abandona ao demónio da velocidade; acelera o passo porque quer fazer-nos compreender que já não aspira a ser lembrada; que se sente cansada de si própria; farta de si própria; que quer soprar a chamazinha trémula da memória. (...)


MILAN KUNDERA
A lentidão

tradução do francês - Miguel Serras Pereira


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

As memórias procriam como se fossem pessoas vivas




Há pequenas impressões finas como um cabelo e que, uma vez desfeitas na nossa mente, não sabemos aonde elas nos podem levar. Hibernam, por assim dizer, nalgum circuito da memória e um dia saltam para fora, como se acabassem de ser recebidos. Só que, por efeito desse período de gestação profunda, alimentada ao calor do sangue e das aquisições da experiência temperada de cálcio e de ferro e de nitratos, elas aparecem já no estado adulto e prontas a procriar. Porque as memórias procriam como se fossem pessoas vivas.


AGUSTINA BESSA-LUÍS
de Antes do Degelo


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

Louvor do esquecimento




Bom é o esquecimento.
Senão como é que
O filho deixaria a mãe que o amamentou?
Que lhe deu a força dos membros e
O retém para os experimentar.

Ou como havia o discípulo de abandonar o mestre
Que lhe deu o saber?
Quando o saber está dado
O discípulo tem de se pôr a caminho.

Na velha casa
Entram os novos moradores.
Se os que a construíram ainda lá estivessem
A casa seria pequena de mais.

O fogão aquece. O oleiro que o fez
Já ninguém o conhece. O lavrador
Não reconhece a broa de pão.

Como se levantaria, sem o esquecimento
Da noite que apaga os rastos, o homem de manhã?
Como é que o que foi espancado seis vezes
Se ergueria do chão à sétima
Pra lavrar o pedregal, pra voar
Ao céu perigoso?

A fraqueza da memória dá
Fortaleza aos homens.


BERTOLT BRECHT
Lendas, Parábolas, Crónicas, Sátiras e outros Poemas

Tradução - Paulo Quintela


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

Esta gente




Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco
Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
Dum país liberto
Duma vida limpa
E de um tempo justo


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Cem Poemas de Sophia


Voz - Cristina Paiva

Música - Sigur Rós

Sonoplastia - Fernando Ladeira