Breve poema da hora vã
Que poderei cantar-te nesta hora?
O século esgotou sua guitarra
Não há surpresas nas sílabas de Abril
Nem histórias para dizer
Ainda se chovesse ou se caissem rosas
Para dentro do verbo
Acontecer.
MANUEL ALEGRE
Chegar aqui
voz: Cristina Paiva
música: W. A. Mozart
sonoplastia: Fernando Ladeira
Autor
Manuel Alegre
Dia de natal
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros — coitadinhos — nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra — louvado seja o Senhor! — o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama. Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
ANTÓNIO GEDEÃO
de Obra Poética
voz - Cristina Paiva e João Brás
música - Tim Story
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
António Gedeão
Esteiros (excerto)
"Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro."
Esteiros. Minúsculos canais,
como dedos de mão espalmada,
abertos na margem do Tejo.
Dedos das mãos avaras dos telhais,
que roubam nateiro às águas
e vigores à malta. Mãos de lama,
que só o rio afaga.
SOEIRO PEREIRA GOMES
Obra Completa
voz - Cristina Paiva
música: Durutti Collumn
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Soeiro Pereira Gomes
Mozart no céu
No dia 5 de dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus
Mozart entrou no céu, como um artista
de circo, fazendo piruetas extraordinárias
sobre um mirabolante cavalo branco.
Os anjinhos atônitos diziam: Que foi? Que não foi?
Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares superiores da pauta.
Um momento se suspendeu a contemplação inefável.
A Virgem beijou-o na testa
E desde então Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anjos.
MANUEL BANDEIRA
Lira dos Cinquent'anos
voz - Cristina Paiva
música - W. A. Mozart por Bobby McFerrin e Chick Corea
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel Bandeira
Tardes Estivais
Tardes estivais. Sol nas funduras.
Os povoados como faróis de neve sobre um mar.
Nuvens de cinzento e vermelho como peitos de aves.
Vibrações ardentes sobre céus suaves.
Águas paradas... Imenso dormitar...
Tardes estivais. Solidão dourada.
Caminhos silenciosos, cintas de claridade.
Alamedas verdes em fundos passionais.
Acordes de ouro vivo parecem os trigais.
Inquietante quietude. Raro tom de fa.
Tarde estivais. Triunfo da carne.
O amor ardente cruza o campo veloz.
Num fundo sangrento e de ouros deslumbrantes
abraçam-se Pan e Vénus cercados de bacantes.
Choros e cantares. Som de foices.
Tardes estivais. Carne, carne e carne.
As estrelas fortes dos grandes desejos
iluminam gloriosas, cheias de sonolência,
os doces mancebos, arautos de impotência
que riem eternos, formosos e feios.
Tardes estivais. Tardes estivais.
A luxúria esconde-se sobre a vossa calma.
A ânfora grandiosa das vossas inquietudes
ao derramar-se mata as azuis virtudes.
Chorosas tardes. Naufrágios da alma.
FEDERICO GARCIA LORCA
Poesía inédita de juventud
tradução: Carlos do Rosário
música: Recolha de Federico Garcia Lorca
voz: Cristina Paiva
canto: Lia Vohlgemuth
piano: Joaquim Coelho
guitarra clássica: Miguel Nogueira
ensaio do espectáculo A colhida e a morte
Autor
Federico Garcia Lorca
Cem frases para leques 1
Tu
chamas-me Rosa
diz a Rosa
mas se tu soubesses
o meu verdadeiro nome
logo eu
me desfolharia
PAUL CLAUDEL
Cem frases para leques
tradução - David Mourão-Ferreira
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Paul Claudel
Despedida
Vós o sabeis, amigos, e eu o sei.
Também os versos são quais bolas de sabão;
umas sobem e outras não.
UMBERTO SABA
Revista Colóquio Letras, Nº 165
Tradução de David Mourão-Ferreira
voz - Cristina Paiva
música: Gloria Gaynor; Lipps,Inc
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Umberto Saba
A descoberta
Anos de estudos
e pesquisas:
Era no amanhecer
Que as formigas escolhiam seus vestidos.
MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
voz - Cristina Paiva
Sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manoel de Barros
Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais quotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
Petrópolis, 25 de Fevereiro de 1947
MANUEL BANDEIRA
Antologia
voz - Cristina Paiva
música - Lali Puna
Sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel Bandeira
Passeio nº 3
Raízes de sabiá e musgo
subindo pelas paredes
Não era normal
o que tinha de lagartixa na palavra paredes.
MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
voz - Cristina Paiva
música - FSOL
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manoel de Barros
Dez réis de esperança
Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos à boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
ANTÓNIO GEDEÃO
Obra Completa António Gedeão
voz - Cristina Paiva
música - Durutti Column
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
António Gedeão
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
CECÍLIA MEIRELES
Antologia Poética
voz - Cristina Paiva
música - Amon Tobin
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Cecília Meireles
A história do contador de histórias (excerto)
Uma vez, de manhãzinha (...) a Sara e a Ana iam de mãos dadas para a escola.
Ou talvez não fosse de manhã. Talvez fosse depois do almoço, já não me lembro. Aliás, talvez (...) não fossem a Sara e a Ana, talvez fossem, afinal, o Rui e a Ana, indo de mãos dadas para a escola... Ou talvez a Sara e a Inês... Ou o Rui e a Márcia... Já não tenho a certeza absoluta. Pensando bem, nem sequer estou seguro de que fossem para a escola. Se calhar iam brincar para o jardim...
O que eu sei é que, uma vez, de manhãzinha (ou então depois do almoço...), duas meninas, ou dois meninos, ou uma menina e um menino, (...) iam para um sítio qualquer (também não estou certo se iam de mãos dadas ou não, mas acho que iam de mãos dadas...)
Ou era apenas um menino? Ou era apenas uma menina? Ou não iam para parte nenhuma, e estavam parados no passeio, diante da janela de um rés-do-chão, vendo, numa sala iluminada (talvez, afinal, fosse à noite, depois do jantar), muitas pessoas sentadas a ver televisão, e um gato amarelo a dormir enrolado em cima da televisão? E as pessoas?, estariam a ver televisão ou a ver o gato amarelo enrolado em cima da televisão? Também já não tenho a certeza...
Não há dúvida que eu não sei esta história. Deve ser outra pessoa quem a sabe... Como é que eu posso contar uma história que eu não sei? Vou ver se me lembro de alguma que eu saiba...
MANUEL ANTÓNIO PINA
Histórias que me contaste tu
Edição: Assírio & Alvim
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel António Pina
Poema de canção sobre a esperança (excerto)
(...)
II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
ÁLVARO DE CAMPOS
Obra Essencial de Fernando Pessoa, Poesia dos outros Eus
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Álvaro de Campos
Estação
Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça
MÁRIO CESARINY
Pena capital
Editor: Assírio & Alvim
voz - Cristina Paiva
música - Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Mário Cesariny
Obriga-se o cronista...
Obriga-se o cronista a manter invariáveis os seguintes adjectivos, quando vierem usados para os seguintes substantivos:
Prelado será sempre virtuoso; cantora será sempre mimosa; jornalista será sempre consciencioso; jovem escritor será sempre esperançoso; patriota será sempre exímio; negociante será sempre honrado; caluniador será sempre infame. As maneiras de quem dá um baile serão sempre amáveis; os convidados sairão sempre penhorados. O folhetinista será sempre espirituoso; o poeta será sempre inspirado. Os irmãos terceiros serão sempre veneráveis. Os sócios de qualquer coisa mercantil serão sempre acreditados. Os meninos recém-nascidos serão sempre robustos. As viúvas serão sempre inconsoláveis.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Se o ricaço der doze vinténs aos inválidos, este feito será sempre um rasgo filantrópico, e a fortuna dele será sempre abençoada. Não haverá baile que não seja animado, nem jantar que não seja lauto, nem serviço que não seja abundante, ou profuso, para variar. Nenhum homem rico terá amigos que não sejam numerosos. Todas as firmas da praça comercial serão sempre respeitáveis. O voto de qualquer parvoinho será sempre ilustrado; e mais depressa morrerá o cronista do que deixará de ser eloquente o discurso de qualquer Cícero fanhoso. Todo o casamento será próspero. Ninguém poderá morrer que não fique sendo bom cidadão, bom pai, bom marido, e terá tudo bom.
CAMILO CASTELO BRANCO
Dispersos III
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Camilo Castelo Branco
Pedra-final
Tanta gente,
tantos enredos
até ficarmos para sempre
quedos!
Para sempre? não!
Que outros (mínimos) seres
já trabalham na nossa remoção.
ALEXANDRE O'NEILL
Poesias Completas
voz - Cristina Paiva
música - Nobukazu Takemura
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Alexandre O´Neill
O poder da memória (excerto)
(...) dirijo-me para (...) os vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens veiculadas por toda a espécie de coisas que se sentiram. Aí está escondido também tudo aquilo que pensamos, quer aumentando, quer diminuindo, quer variando de qualquer modo que seja as coisas que os sentidos atingiram, e ainda tudo aquilo que lhe tenha sido confiado, e nela depositado, e que o esquecimento ainda não absorveu nem sepultou. Quando aí estou, peço que me seja apresentado aquilo que quero: umas coisas surgem imediatamente; outras são procuradas durante mais tempo e são arrancadas dos mais secretos escaninhos; outras, ainda, precipitam-se em tropel e, quando uma é pedida e procurada, elas saltam para o meio como que dizendo: ‘Será que somos nós?’ E eu afasto-as da face da minha lembrança, com a mão do coração, até que fique claro aquilo que eu quero e, dos seus escaninhos, compareça na minha presença. Outras coisas há que, com facilidade e em sucessão ordenada, se apresentam tal como são chamadas, e as que as vêm antes cedem lugar às que vêm depois, e, cedendo-o, escondem-se, para reaparecerem de novo quando eu quiser. Tudo isto acontece quando conto alguma coisa de memória. (...)
SANTO AGOSTINHO
Confissões, Livro X
tradução - Arnaldo do Espírito Santo, João Beato, Maria Cristina Castro-Maia de Sousa Pimentel
voz - Cristina Paiva
música - Daniel Maze
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Santo Agostinho
Segundo
Quando foi que demorei os olhos sobre os seios nascendo debaixo das blusas, das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?...
... Como nasci poeta devia ter sido muito antes que as mães se apercebessem disso e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.
Mas a história dos peitos, debaixo das blusas, foi um grande mistério. Tão grande que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava, sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez, de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira
que levou o chapéu do Senhor Administrador!
Em toda a vila se falou logo num caso de política;
o senhor Administrador mandou vir da cidade uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu…
Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!
MANUEL DA FONSECA
Obra poética
voz - Cristina Paiva
música - Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel da Fonseca
Frente a frente
Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.
Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
e é tão pouco!
EUGÉNIO DE ANDRADE
Obra de Eugénio de Andrade/2
voz - Cristina Paiva
música - Ayahuaska
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Eugénio de Andrade
Sem memória
Haverá para os dias sem memória
outro nome que não seja morte?
Morte das coisas limpas, leves:
manhã rente às colinas,
a luz do corpo levada aos lábios,
os primeiros lilases do jardim.
Haverá outro nome para o lugar
onde não há lembrança de ti?
EUGÉNIO DE ANDRADE
O Outro Nome da Terra
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Eugénio de Andrade
E tudo era possível
Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido
Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido
E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer
Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer
RUY BELO
Obra poética
voz - Cristina Paiva
música - FSOL
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Ruy Belo
Miniatura
Pois eu gosto de crianças!
Já fui criança, também…
Não me lembro de o ter sido;
Mas só ver reproduzido
O que fui, sabe-me bem.
É como se de repente
A minha imagem mudasse
No cristal duma nascente,
E tudo o que sou voltasse
À pureza da semente.
MIGUEL TORGA
Antologia poética
voz - Cristina Paiva
música - Popular
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Miguel Torga
O esconderijo do homem triste (excerto)
(...) É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.
Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar. Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele. A máquina disparou sem cessar.
Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse que nunca mais o voltaria a fazer.
Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador, eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos, porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes - e todo o meu corpo estava mole.
Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear, a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.
Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então, a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo, brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida, voluptuosa, do fixador.
Tinha encontrado o esconderijo. (...)
AL BERTO
O esconderijo do homem triste
voz - Cristina Paiva
música - Colleen
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Al Berto
Elegia da lembrança impossível
O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
O que não daria eu pela memória
De que tu me dissesses que me amavas
E de não ter dormido até à aurora,
Dissoluto e feliz.
JORGE LUIS BORGES
A Moeda de Ferro
Tradução de Fernando Pinto do Amaral
voz - Cristina Paiva
música - György Ligeti
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Jorge Luis Borges
A história da moral
Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.
Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.
ALEXANDRE O´NEILL
Poesias Completas
voz - Baye Selle Mbaye*
música - José M. Raminhos pela Banda da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898 de Alcochete
sonoplastia - Fernando Ladeira
*gravado ao vivo no Cacharolete de Contos dos Contabandistas no Bacalhoeiro em Lisboa.
Autor
Alexandre O´Neill
Poética pícara
A poesia é um gozo
um uso sabido
do uso errado
A poesia é um gozo
e se o não é
a culpa é do vizinho do lado
A poesia é um gozo
de palavras paralelas
daquelas
que não há
A poesia é um gozo
como um osso
encravado
A poesia é um gozo
o leitor
deve sentir-se gozado
E. M. DE MELO E CASTRO
Antologia para Inici-Antes
voz - Cristina Paiva
música - Dj shadow
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
E. M. de Melo e Castro
Tanto Mar (Versão I)
Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo pra mim
Eu queria estar na festa, pá
Com a tua gente
E colher pessoalmente
Uma flor do teu jardim
Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também que é preciso, pá
Navegar, navegar
Lá faz primavera, pá
Cá estou doente
Manda urgentemente
Algum cheirinho de alecrim
CHICO BUARQUE
Chico Buarque & Maria Bethania ao vivo - 1975
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Chico Buarque
O retrato de Dorian Gray (excerto)
(...) É triste pensar assim, mas não há dúvida que o Génio dura mais que a Beleza. É por isso que todos nós nos esforçamos tanto por nos cultivar. Na luta selvagem pela existência, queremos ter algo que dure e por isso enchemos as nossas mentes de entulho e factos, na esperança vã de mantermos o nosso estatuto. O homem perfeitamente bem informado, é esse o ideal moderno. E a mente do homem perfeitamente bem informado é uma coisa medonha. É como uma loja de bricabraque, só mamarrachos e pó, todas as coisas cotadas acima do seu valor. (...)
OSCAR WILDE
O Retrato de Dorian Gray
tradução - Artur Parreira
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Oscar Wilde
Escuto
Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou deus
Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita
Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
de Cem Poemas de Sophia
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
À volta de um búzio
Dizem que o búzio nos traz
ao ouvido o som do mar.
Mas eu acho que é mentira:
se encosto o búzio ao ouvido
só ouço as ondas do ar.
As ondas do ar me trazem
forte cheiro a maresia.
Mas eu acho que é mentira:
o mar não mora nas nuvens,
nunca em nuvens viveria.
Descem as nuvens no mar
se acaso a chuva acontece.
Mas eu acho que é mentira:
se encosto o búzio ao ouvido,
ouvir o mar me parece.
MARIA ALBERTA MENÉRES
Conto estrelas em ti
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Maria Alberta Menéres
Canção de maltês
Bati à porta do monte porque sou um deserdado.
E chovia nessa noite como se o céu fosse um mar
entornando-se na terra.
- Quem abre a porta a desoras morando num descampado?
E continha o rafeiro que ladrava, na ponta do meu cajado.
Mas veio abri-la o lavrador com a espingarda na mão,
e pôs um olhar altivo tão no fundo dos meus olhos
que as minha primeiras falas foram assim naturais:
- guarde a espingarda, senhor, sou um homem sem trabalho.
Fui secar-me à lareira.
E a filha do lavrador, que era uma moça perfeita,
ficou a olhar de gosto a minha manta rasgada
e o meu fato de maltês.
E com licença do pai, estendeu-me um canto de pão
com azeitonas maduras.
Não aceitei como esmola; antes roubar que pedir:
paguei com a melhor história da minha vida sem rumo.
Foi uma paga de rei.
Prá filha do lavrador, tinha muito mais valia
a história que lhe contei que o trigo do seu celeiro,
pois estava a olhar de gosto a minha manta rasgada.
E quando o fogo na lareira ia aos poucos esmorecendo
agradeci como é de uso; despedi-me até mais ver
e fui dormir pró palheiro que é palácio de maltês.
Despedi-me até mais ver que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Despedi-me até mais ver que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Despedi-me até mais ver que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Assim me deitei ao canto a esperar pela manhã.
MANUEL DA FONSECA
Obra Poética
voz - Cristina Paiva
música - Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel da Fonseca
Partir!...
Eu vou-me embora para além do Tejo,
não posso mais ficar!
Já sei de cor os passos de cada dia,
na boca as mesmas palavras
batidas nos meus ouvidos...
- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...
Abro os olhos e não vejo
já não ando, já não oiço...
Não posso mais...
Grita-me a Vida de longe
e eu vou-me embora para além do Tejo.
Passa a ave no céu bebendo azul e diz: -Vem!
O vento envolve-me numa carícia,
envolve-me e murmura: -Vem!
As ondas estalam nas praias e vão mar fora,
as mãos de espuma a prender-me os sentidos
chamam no fundo dos meus olhos: -Vem!
- Camaradas,eu vou,esperai um pouco...
Ai,mas a vida nunca espera por ninguém...
E a noite chega vingadora;
o vento rasga-me o fato,
as ondas molham-me a carne
e a ave pia misticamente no ar;
abro os olhos e não vejo,
já não ando, já não oiço
- e fico, desgraçado de ficar!..
MANUEL DA FONSECA
Obra Poética
voz - Cristina Paiva
música - Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel da Fonseca
Soma
Não te fies em balelas
nem somes mais do que a conta.
Às vezes muitas parcelas
Dão soma de pouca monta...
MANUEL ANTÓNIO PINA
Pequeno livro de desmatemática
Edição: Assírio & Alvim
voz - Cristina Paiva
música: Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel António Pina
Sonho de uma terça feira gorda
Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros, e negras eram as nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas!
E a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro e luminoso!
Era terça feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingénuas, ao gosto popular, em cores cruas.
Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes – Vénus para caixeiros.
Figuravam deusas – deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.
A turba, ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.
Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade.
O ar lúgubre, negros, negros ...
Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
A profunda, a silenciosa alegria ...
MANUEL BANDEIRA
Antologia
voz - Cristina Paiva
música - Armandinho
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel Bandeira
Um pequeno-almoço histórico
Um homem aproxima uma chávena de café da cara, inclina-a para a boca. É histórico, pensa. Ele coça a cabeça: outro acontecimento histórico. Devia era descansar, está a produzir uma quantidade imensa de história logo de manhã.
Credo, agora está a barrar torradas com manteiga, outro bocado de história a fazer-se.
Ele espanta-se por ter-lhe sido destinado ser tão histórico. Outros provavelmente não o têm, pensa, é, ao fim e ao cabo, um talento.
Ele pensa que um dos seus atacadores precisa de ser apertado. Ah bom, mais um acontecimento histórico importante que está para acontecer. Não o pode evitar. Estará talvez a ocupar uma faixa demasiado grande de história? Mas tem que viver, não tem? As torradas necessitam de manteiga e ele não pode andar por aí com um dos atacadores desapertados, pois não?
É certamente verdade, que quando escreverem todo o século XX será principalmente acerca dele. É a forma como o bolo se esmigalha - ah, aí está uma frase que será citada nos séculos vindouros.
Convencido? Um pouco; como pode evitá-lo observado por todos os olhos ainda por nascer do futuro?
Oh, oh, sente outro acontecimento histórico a chegar... Ah, ai está, uma chávena de café a aproximar-se da cara na ponta do seu braço. Se conseguissem registar isso em filme, quanta importância não teria para o futuro.
Bolas, derramou-o todo no colo. Um desses acidentes históricos que influenciarão os próximos mil anos; imprevisível e até muito desconfortável... Mas a história nunca é fácil, pensa ele...
RUSSELL EDSON
O túnel
tradução - José Alberto Oliveira
voz - Cristina Paiva
música - Carl Orff
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Russel Edson
Os mistérios de um telhado (excerto)
(...) Tanta gente! tantos os que nos falam e nos apertam as mãos; tantos os que nos segredam uma palavra inútil, uma frase lisonjeira... e nem uma amizade sincera, nem um raio dessa outra amizade sublime, a que chamam o amor!
Amor, sim! Amor, que é a alma da nossa alma, a vida da nossa vida, flor maravilhosa, que a terra roubou ao Paraíso. Eu creio em duas alavancas que movem todos os interesses e que miram todas as aspirações: O dinheiro e o amor. Dinheiro! ideal dos ambiciosos da matéria... Amor! ideal dos ambiciosos do sentimento... (...)
WENCESLAU DE MORAES
Os mistérios de um telhado
voz - Cristina Paiva
música - And Also The Trees
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Wenceslau de Moraes
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Antologia poética
voz - Cristina Paiva
música: Yann Tiersen
sonoplastia - Fernando Ladeira
Caranguejola
Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!
Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira...
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.
Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com estes enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar!...
Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho– que amor!...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor –
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...
Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...
De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?...
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo –
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! levem-me prá enfermaria! –
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará..
Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível, por causa da legenda...
De aqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda;
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...
Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras...
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.
MÁRIO DE SÁ CARNEIRO
Poemas Completos
Edição: Assírio & Alvim
voz - Cristina Paiva
música: The Valerie Project
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Mário de Sá Carneiro
Mas se tentasses...
Mas se tentasses isto: de mãos dadas seres
para mim como no copo de vinho o vinho é vinho.
Se tentasses isto.
RAINER MARIA RILKE
Poemas II
tradução - Paulo Quintela
voz - Cristina Paiva
música: Scott Tuma
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Rainer Maria Rilke
Pretexto
O que eu gostaria de fazer é um livro sobre nada. Foi o que escreveu Flaubert a uma sua amiga em 1852. Li nas Cartas exemplares organizadas por Duda Machado. Ali se vê que o nada de Flaubert não seria o nada existencial, o nada metafísico. Ele queria o livro que não tem quase tema e se sustente só pelo estilo. Mas o nada de meu livro é nada mesmo. É coisa nenhuma por escrito: um alarme para o silêncio, um abridor de amanhecer, pessoa apropriada para pedras, o parafuso de veludo, etc. etc. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras. Fazer coisas desúteis. O nada mesmo. Tudo que use o abandono por dentro e por fora.
MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
voz - Cristina Paiva
música: Tom Waits
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manoel de Barros
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