E tudo era possível




Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer

RUY BELO
Obra poética


voz - Cristina Paiva

música - FSOL

sonoplastia - Fernando Ladeira

Miniatura




Pois eu gosto de crianças!

Já fui criança, também…

Não me lembro de o ter sido;

Mas só ver reproduzido

O que fui, sabe-me bem.


É como se de repente

A minha imagem mudasse

No cristal duma nascente,

E tudo o que sou voltasse

À pureza da semente.



MIGUEL TORGA
Antologia poética


voz - Cristina Paiva

música - Popular

sonoplastia - Fernando Ladeira

O esconderijo do homem triste (excerto)




(...) É desse lugar iluminado que, hoje, vos falo.
Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar. Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele. A máquina disparou sem cessar.
Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse que nunca mais o voltaria a fazer.
Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador, eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos, porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes - e todo o meu corpo estava mole.
Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear, a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.
Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então, a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo, brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida, voluptuosa, do fixador.
Tinha encontrado o esconderijo. (...)

AL BERTO
O esconderijo do homem triste


voz - Cristina Paiva

música - Colleen

sonoplastia - Fernando Ladeira

Elegia da lembrança impossível




O que não daria eu pela memória
De uma rua de terra com baixos taipais
E de um alto ginete enchendo a alba
(Com o poncho grande e coçado)
Num dos dias da planície,
Num dia sem data.
O que não daria eu pela memória
Da minha mãe a olhar a manhã
Na fazenda de Santa Irene,
Sem saber que o seu nome ia ser Borges.
O que não daria eu pela memória
De ter lutado em Cepeda
E de ter visto Estanislao del Campo
Saudando a primeira bala
Com a alegria da coragem.
O que não daria eu pela memória
Dos barcos de Hengisto,
Zarpando do areal da Dinamarca
Para devastar uma ilha
Que ainda não era a Inglaterra.
O que não daria eu pela memória
(Tive-a e já a perdi)
De uma tela de ouro de Turner,
Tão vasta como a música.
O que não daria eu pela memória
De ter sido um ouvinte daquele Sócrates
Que, na tarde da cicuta,
Examinou serenamente o problema
Da imortalidade,
Alternando os mitos e as razões
Enquanto a morte azul ia subindo
Dos seus pés já tão frios.
O que não daria eu pela memória
De que tu me dissesses que me amavas
E de não ter dormido até à aurora,
Dissoluto e feliz.

JORGE LUIS BORGES
A Moeda de Ferro

Tradução de Fernando Pinto do Amaral


voz - Cristina Paiva

música - György Ligeti

sonoplastia - Fernando Ladeira

A história da moral





Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo.

ALEXANDRE O´NEILL
Poesias Completas

voz - Baye Selle Mbaye*

música - José M. Raminhos pela Banda da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898 de Alcochete

sonoplastia - Fernando Ladeira


*gravado ao vivo no Cacharolete de Contos dos Contabandistas no Bacalhoeiro em Lisboa.