A história do contador de histórias (excerto)
Uma vez, de manhãzinha (...) a Sara e a Ana iam de mãos dadas para a escola.
Ou talvez não fosse de manhã. Talvez fosse depois do almoço, já não me lembro. Aliás, talvez (...) não fossem a Sara e a Ana, talvez fossem, afinal, o Rui e a Ana, indo de mãos dadas para a escola... Ou talvez a Sara e a Inês... Ou o Rui e a Márcia... Já não tenho a certeza absoluta. Pensando bem, nem sequer estou seguro de que fossem para a escola. Se calhar iam brincar para o jardim...
O que eu sei é que, uma vez, de manhãzinha (ou então depois do almoço...), duas meninas, ou dois meninos, ou uma menina e um menino, (...) iam para um sítio qualquer (também não estou certo se iam de mãos dadas ou não, mas acho que iam de mãos dadas...)
Ou era apenas um menino? Ou era apenas uma menina? Ou não iam para parte nenhuma, e estavam parados no passeio, diante da janela de um rés-do-chão, vendo, numa sala iluminada (talvez, afinal, fosse à noite, depois do jantar), muitas pessoas sentadas a ver televisão, e um gato amarelo a dormir enrolado em cima da televisão? E as pessoas?, estariam a ver televisão ou a ver o gato amarelo enrolado em cima da televisão? Também já não tenho a certeza...
Não há dúvida que eu não sei esta história. Deve ser outra pessoa quem a sabe... Como é que eu posso contar uma história que eu não sei? Vou ver se me lembro de alguma que eu saiba...
MANUEL ANTÓNIO PINA
Histórias que me contaste tu
Edição: Assírio & Alvim
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel António Pina
Poema de canção sobre a esperança (excerto)
(...)
II
Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!
ÁLVARO DE CAMPOS
Obra Essencial de Fernando Pessoa, Poesia dos outros Eus
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Álvaro de Campos
Estação
Esperar ou vir esperar querer ou vir querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me apareço
e o fato com que virei preocupa-me, pois chove miudinho
Muita vez vim esperar-te e não houve chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que passavam.
Se algum de nós vier hoje é já bastante
como comboio e como subtileza
Que dê o nome e espere. Talvez apareça
MÁRIO CESARINY
Pena capital
Editor: Assírio & Alvim
voz - Cristina Paiva
música - Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Mário Cesariny
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