Breve poema da hora vã
Que poderei cantar-te nesta hora?
O século esgotou sua guitarra
Não há surpresas nas sílabas de Abril
Nem histórias para dizer
Ainda se chovesse ou se caissem rosas
Para dentro do verbo
Acontecer.
MANUEL ALEGRE
Chegar aqui
voz: Cristina Paiva
música: W. A. Mozart
sonoplastia: Fernando Ladeira
Autor
Manuel Alegre
Dia de natal
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros — coitadinhos — nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra — louvado seja o Senhor! — o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama. Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
ANTÓNIO GEDEÃO
de Obra Poética
voz - Cristina Paiva e João Brás
música - Tim Story
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
António Gedeão
Esteiros (excerto)
"Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, escrevi este livro."
Esteiros. Minúsculos canais,
como dedos de mão espalmada,
abertos na margem do Tejo.
Dedos das mãos avaras dos telhais,
que roubam nateiro às águas
e vigores à malta. Mãos de lama,
que só o rio afaga.
SOEIRO PEREIRA GOMES
Obra Completa
voz - Cristina Paiva
música: Durutti Collumn
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Soeiro Pereira Gomes
Mozart no céu
No dia 5 de dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus
Mozart entrou no céu, como um artista
de circo, fazendo piruetas extraordinárias
sobre um mirabolante cavalo branco.
Os anjinhos atônitos diziam: Que foi? Que não foi?
Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares superiores da pauta.
Um momento se suspendeu a contemplação inefável.
A Virgem beijou-o na testa
E desde então Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço dos anjos.
MANUEL BANDEIRA
Lira dos Cinquent'anos
voz - Cristina Paiva
música - W. A. Mozart por Bobby McFerrin e Chick Corea
sonoplastia - Fernando Ladeira
Autor
Manuel Bandeira
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