Viagens com o Charley (excerto)




(...) Quando eu era muito novo e sentia em mim o impulso irreprimível de estar em qualquer outro sítio, foi-me assegurado por pessoas de idade madura que a maturidade curaria este desejo ardente. Quando os anos me indicavam como amadurecido, o remédio prescrito foi a meia-idade. Na meia-idade, asseguraram-me que uns anos mais acalmariam a minha febre, e agora, que tenho cinquenta e oito, talvez a senilidade o consiga. Nada surtiu efeito. Quatro sopros roufenhos do apito de um navio ainda arrepiam o cabelo da minha nuca e põem os meus pés a sapatear. O som de um avião de jacto, de um motor a aquecer, até o bater de cascos ferrados no pavimento, provocam o antigo estremeção, a boca seca e o olhar vago, o calor das palmas das mãos e a agitação violenta do estômago, aos pulos sob a caixa das costelas. Por outras palavras, não melhoro, ou, indo mais longe, quem foi vadio é sempre vadio. Receio que a doença seja incurável. (...)


JOHN STEINBECK
Viagens com o Charley
tradução - Sousa Victorino


voz - Cristina Paiva

música - Kraftwerk por Alexander Balanescu

sonoplastia - Fernando Ladeira

Nova York num Poeta (excerto)



Senhoras e senhores:

Quando falo à frente de muitas pessoas parece-me sempre que errei na porta. Mãos amigas empurraram-me, e aqui estou. Metade das pessoas vive perdida entre cenários, árvores pintadas, fontes de lata e, quando julga que encontrou o seu quarto ou um círculo de morno sol, encontra-se com um caimão que a engole ou... com o público, como eu neste momento. E hoje não tenho mais espectáculo além de uma poesia amarga, mas viva, que julgo capaz de abrir os olhos à força de chicotadas que lhe dei. (...)

De qualquer forma, há que ser claro. Hoje não venho aqui para vos entreter. Nem quero, nem me importa, nem tenho vontade. Melhor dizendo, vim lutar. Lutar corpo a corpo com uma massa tranquila, pois o que vou fazer não é uma conferência, é uma leitura de poesias, carne minha, alegria minha e sentimento meu, e preciso de me defender deste enorme dragão que tenho à frente, que me pode comer com os trezentos bocejos das suas trezentas cabeças defraudadas. E a luta é esta; quero veementemente comunicar convosco já que vim, já que estou aqui, já que saio um instante do meu grande silêncio poético e não quero dar-vos mel, porque o não tenho, apenas areia, ou cicuta, ou água salgada. Luta corpo a corpo onde me não importa ser vencido.


FEDERICO GARCIA LORCA
de Lorca Nova York num Poeta
tradução - António Moura


voz - Cristina Paiva

música - Scott Joplin

piano - Joaquim Coelho

Aurora boreal




Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.

Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.


ANTÓNIO GEDEÃO
Obra Poética


voz - Cristina Paiva

música - Penguin Cafe Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

Outono




Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados dizendo aos pais que era uma árvore.
Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.
Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.
Mas os pais disseram olha é outono.


RUSSELL EDSON
O Túnel
tradução de José Alberto Oliveira

voz - Cristina Paiva

música - Ry Cooder

sonoplastia - Fernando Ladeira

Semiologia




Digo: o amor. Há palavras que parecem sólidas,
ao contrário de outras que se desfazem nos dedos.
Solidão. Ou ainda: medo. As palavras, podemos
escolhê-las, metê-las dentro do poema como
se fosse uma caixa. Mas não escondê-las. Elas
ficam no ar, invisíveis, como se não precisassem
dos sons com que as dizemos.


NUNO JÚDICE
Poesia reunida 1967-2000


voz - Cristina Paiva

música - Sétima Legião

sonoplastia - Fernando Ladeira

como me querem?





como me querem?
de frente, não?
talvez de lado.
de frente não fico bem
nota-se mais a tristeza
funda que sobre as coisas
deita o meu olhar parado

então está assente:
para não perturbar a paz dos dias
fico de lado como um disfarce
nessa penumbra da gente
que não tem onde agarrar-se



MARIA COSTA


voz - Cristina Paiva

música - Les Nouvelles Polyphonies Courses / John Cale

sonoplastia - Fernando Ladeira

Arte poética V





Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas - coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:

A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
de Ilhas

voz - Cristina Paiva

Porto Sudão (excerto)




(...) porque creio que as palavras são também uma questão corporal:
é com todo o peso do busto, dos ombros, das ancas, é com a rapidez das pernas
e dos braços, a nervosa agilidade dos tornozelos, dos punhos, do pescoço,
é com o que o sexo acrescenta de sério e ao mesmo tempo de infinitamente jovial
a toda esta máquina que as experimentamos: lutando com elas.(...)

OLIVIER ROLIN
de Porto Sudão

voz - Cristina Paiva

música - This Mortal Coil

sonoplastia - Fernando Ladeira