sobreiro inútil





sobre um canto
escuro, dentro de
uma grande árvore
vivia um homem
de emoções reprimidas.
reprimidas, dizes tu?
bem, não reprimidas...
afugentadas.
ah, afugentadas é diferente.
sim... era um homem obrigado
a viver em exílio por ter
emoções fortes, um
homem marginalizado
pela incompreensão e por
julgamento precipitados...
triste, meu caro,
tendes uma história algo triste.
uma pessoa julgada
precipitadamente
que se tornou um peso
morto, sabeis? uma daquelas
pessoas de ambições destruídas
e de sonhos esmigalhados
obrigado a reprimir-se
e a viver na sombra
do que uma vez foi...
como eu disse...
um peso morto.

DIOGO LOPES
ContraBaixo


voz - Cristina Paiva

música – The Cinematic Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

fotografia – Nuno Ferreira Santos e Fernando Ladeira

Chama





Era uma vez uma chama sozinha. Procurava outra. Precisava dela.
Quase a extinguir-se, viu-a. Aproximou-se a custo. Perguntou-lhe:
- Como te chamas?
- Chama.
Num último alento, a chama sozinha gritou-lhe o nome:
- Chama. Chama. Chama.
Abraçaram-se. Foi um grande incêndio.


ANTÓNIO TORRADO
O conta-gotas


voz - Cristina Paiva

música - John Zorn

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira

ilustrações - Gémeo Luís

Um dia guardei num caderno





Um dia guardei num caderno
o caderno escolar que a senhora maria
me ofereceu no primeiro dia de escola
uma palavra na verdade perdida
porque o caderno se perdeu
e a senhora maria coitada
sempre me perguntava pelo caderno
onde ela não sabia que houvera uma palavra
guardada a senhora maria envelheceu
morreu e eu percorro o mesmo caminho
esquecido já do caderno onde perdi
uma palavra cujo único valor
era o de poder ser guardada não
acontece isso com todas as palavras
e por isso são muito raras
as palavras que se oferecem
em cadernos com a eternidade garantida.

CARLOS ALBERTO MACHADO
A Realidade Inclinada


voz - Cristina Paiva

música - Durutti Column

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira

Status Report





sou comarca onde parou de chover
e quem não se lembra da sanguechuva
que foi em tempos este coração

já não tenho a vida toda (faço trinta
o mês que vem) e a verdade é que nem
na morte se pôde alguma vez confiar

muito mal contado, isso da morte


MIGUEL-MANSO
Tojo - Poemas escolhidos


voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira

Poema a partir de José Mário Silva e Margarida Vale de Gato, a partir de Ruy Belo





Desmanchamos o tempo como se um sobressalto
nos atingisse o corpo e o metesse dentro de uma caixa.
Precisamos de ar,
de respirar no meio da gente,
subir aos degraus com os pássaros,
gritar para o asfalto,
para que acordem as crianças e os velhos,
dizendo que está aí a luz do Verão,
os dias abertos para as encostas e para os rios.
Estamos aqui dentro de uma aldeia
pintada de xisto e de oliveiras,
ouvindo a água que corre das cascatas para os vales
longe das cidades, mas no coração das casas,
como um peixe que voa por cima de um país.


JAIME ROCHA
É absolutamente certo nº6, Abril 2013
(Jornal da Biblioteca Municipal de Vila Velha de Ródão)



voz - Cristina Paiva

música - Joachim Holbek

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira

As palavras são novas





As palavras são novas: nascem quando
No ar as projectamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias

Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.


JOSÉ SARAMAGO
Os poemas possíveis


voz - Cristina Paiva

música - Paavoharju

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira

Como se desenha uma casa





Primeiro abre-se a porta
por dentro sobre a tela imatura onde previamente
se escreveram palavras antigas: o cão, o jardim impresente,
a mãe para sempre morta.
Anoiteceu, apagamos a luz e, depois,
como uma foto que se guarda na carteira,
iluminam-se no quintal as flores da macieira
e, no papel de parede, agitam-se as recordações.
Protege-te delas, das recordações,
dos seus ócios, das suas conspirações;
usa cores morosas, tons mais-que-perfeitos:
o rosa para as lágrimas, o azul para os sonhos desfeitos.
Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.

MANUEL ANTÓNIO PINA
Como se desenha uma casa
Edição: Assírio & Alvim


voz, sonoplastia e fotografia* - Fernando Ladeira

música - Joel Vandroogenbroeck

* fotografia de Manuel António Pina - António Rilo

O guarda-rios






É tão difícil guardar um rio
quando ele corre
dentro de nós.


JORGE SOUSA BRAGA
O poeta nú


voz - Cristina Paiva

música - The Valerie Project

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira