Poema à boca fechada




Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.


JOSÉ SARAMAGO
Os poemas possíveis


voz - Cristina Paiva

música - Eleni Karaindrou

sonoplastia - Fernando Ladeira

Grammatica Rudimentar




Aquelle Manuel do Rego
É rapaz de tanto tino
Que em lirio põe sempre y grego,
E em lyra põe i latino!

E como a gente diz ceia
Escreve sempre ceiar;
Assim como de passeia
Tira o verbo passeiar!

Nunca diz senão peior
Não só por ser mais bonito,
Mas porque achou num auctor
Que deriva de sanskrito.

Escreve razão com s,
E escreve Brasil com z:
Assim elle nos quizesse
Dizer a razão porquê!

Também como diz - eu soube
Julga que eu poude é correcto:
Temo que a morte nos roube
Rapazinho tão discreto!

É um gramático o Rego!
É um purista o finorio...
Se Camões fallava grego,
E o Vieira latinorio!


JOÃO DE DEUS
Campo de flores


voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira

A nau luareta



Baixou a Lua,
caiu ao mar,
passou um barco
a navegar.
E o barco
olhou
a Lua,
e de espanto
encalhou.
Vieram os marinheiros,
da ré para a proa,
da proa para a ré,
e todos diziam:
- É a Lua! É!
Veio o capitão,
e gritou:
- Não é, não é!
É o meu boné
que caiu ao mar!
E continuava a gritar:
- Quem o vai salvar?
Veio o grumete
e gritou:
- Não é a Lua, não!
É uma sereia
branca de espuma...
E os marujinhos gritaram:
- Que ideia! Que ideia!
Tem cada uma!
Veio o cozinheiro,
e gritou:
- Não é a Lua, não,
mas um peixe
redondo,
como nunca vi,
chato como uma pá.
E os marujinhos
gritaram:
- Será? Será?
E depois
veio uma menina,
não se sabe de onde,
nem para onde ia,
ninguém a conhecia,
ninguém, ninguém,
nem quem seria
seu pai,
sua mãe,
e disse:
- É a Lua! É a Lua!
E os marujinhos gritaram
à uma:
- É a Lua! É a Lua!
É a verdade nua!
É a verdade nua!
E o capitão ordenou:
- Que ninguém se afoite!
É navegar! É navegar!
Já caiu a noite!
E o capitão
foi
para a coberta,
de cabeça
descoberta.
E o grumete
foi
para bombordo.
E os marujinhos,
todos
para
estibordo.
O cozinheiro,
para a cozinha.
E a menina
desapareceu,
sozinha.


MATILDE ROSA ARAÚJO
A guitarra da boneca

voz - Cristina Paiva

música: Art Hickmans Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

História do Senhor Mar




Era uma vez
O senhor Mar
Com uma onda...
Com muita onda...

E depois?
E depois...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
E depois...

A menina adormeceu
Nos braços da sua Mãe...

MATILDE ROSA ARAÚJO
O Livro da Tila

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

O mundo é grande




O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Amar se Aprende Amando


voz - Cristina Paiva

música - Ryuichi Sakamoto

sonoplastia - Fernando Ladeira