Caricaturas a carvão



Leitor: - esta secção, fruto de horas risonhas,
contém mil carantonhas,
que fariam sorrir talvez o rei de Tule.
São dois, três riscos só – mas naturais, vibrantes - ,
quais monos de estudantes,
borrados a carvão, à luz de um punch azul.

Neles encontrarás, com seus fatos singelos,
de chambre e de chinelos...
tipos piramidais desta época distintos.
Amigo! - se tu não és um bolónio, um pascácio,
um concelheiro Acácio,
matuta neles bem. - Adeus, saúde e pintos.


GOMES LEAL
Fim de um mundo, Sátiras Modernas


voz: Cristina Paiva

música: Kurt Briggs

sonoplastia: Fernando Ladeira

Balada do país que dói




O barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o corpo cai
o corpo dói

português vai
português cai

o barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o país cai
o país dói

o tempo vai
o tempo dói

português cai
português vai
português sai
português dói


ANA HATHERLY
Antologia da poesia experimental portuguesa
Anos 60 - Anos 80


Voz - Cristina Paiva

Música - Martinho d'Assunção

Sonoplastia - Fernando Ladeira

O banho





Um homem estava a tomar banho numa banheira
de molho de peru; a pôr um patinho amarelo a boiar
para passar a eternidade. Comia puré de batata, mergulhava
no banho grandes garfadas...
Uma beleza, tudo aquilo, pensou, eu num ensopado
com um pato, a comer puré de batata com molho, e lá fora
um mundo completamente louco...


RUSSEL EDSON
O espelho atormentado

Tradução: Guilherme Mendonça


voz: Cristina Paiva

música: Yppah

sonoplastia: Fernando Ladeira

Paris at night




Três fósforos um a um acesos na noite
O primeiro para ver o teu rosto inteiro
O segundo para ver os teus olhos
O terceiro para ver a tua boca
E toda a escuridão para recordar tudo isso
Apertando-te nos braços.

JACQUES PRÉVERT
Palavras

Tradução: Manuela Torres



voz: Cristina Paiva

música: Yann Tiersen

sonoplastia: Fernando Ladeira

A mama





Uma noite a mama de uma senhora entrou no quarto de
um homem e pôs-se a falar da sua irmã gémea.
A sua irmã gémea isto, a sua irmã gémea aquilo...

Passado algum tempo o homem disse, então e tu, querida mama?
E a mama passou o resto da noite a falar dela própria.
Ela própria isto, ela própria aquilo ...

Passado algum tempo o homem beijou-lhe o mamilo, pediu desculpa e adormeceu ...


RUSSEL EDSON
O espelho atormentado

Tradução: Guilherme Mendonça


voz: Cristina Paiva

música: Gianni Ferrio por Dalida & Alain Delon

sonoplastia: Fernando Ladeira

13





Sentaram-se na areia e descalçaram os sapatos.
Puseram-se a contar pelos dedos os barcos
que faltariam para chegar o verão.

Nenhum deles falava. Tinham passado juntos
algumas noites; num quarto sem vista. E, embora
julgassem o contrário, não conheciam um do outro
muito mais do que isso.

Estavam ali sentados para ver se acontecia alguma coisa.

No verão
alguém viria forçosamente buscá-los.


MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
A casa e o cheiro dos livros


voz: Cristina Paiva

música: Tom Waits

sonoplastia: Fernando Ladeira

Na florista




Um homem entra numa florista
e escolhe umas flores
a florista embrulha as flores
o homem leva a mão ao bolso
para tirar o dinheiro
dinheiro para pagar as flores
mas ao mesmo tempo
subitamente
leva a mão ao coração
e cai

Ao cair
o dinheiro corre pelo chão
e depois as flores caem
ao mesmo tempo que o homem
ao mesmo tempo que o dinheiro
e a florista ali parada
com o dinheiro a correr
com as flores a murchar
com o homem a morrer
Claro que tudo isto é muito triste
e ela tem que fazer qualquer coisa
a florista
mas não sabe como proceder
não sabe
por onde começar
Há tanta coisa a fazer
com aquele homem a morrer
com aquelas flores a murchar
e com aquele dinheiro
aquele dinheiro a correr
e que não pára de correr.

JACQUES PRÉVERT
tradução de Manuela Torres
de Palavras


voz: Cristina Paiva

música: Tom Waits

sonoplastia: Fernando Ladeira

Escuro




Pergunto-me desde quando
deixou de haver futuro
nas janelas.

Janeiro dói nos olhos
como areia
e tu e eu estamos para sempre
sentados às escuras
no Verão.

RUI PIRES CABRAL
O futuro em anos-luz
100 anos.100 poetas. 100 poemas
selecção e organização valter hugo mãe



voz: Cristina Paiva

música: Vibrasphere

sonoplastia: Fernando Ladeira

25 de Abril




Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
O nome das coisas


voz - Cristina Paiva

Musica - José Afonso

O poema canivete suíço




“O poema é antes de tudo um inutensílio”
Manoel de Barros

E no entanto, Manoel, eu uso-o de nuvem,
faca, canário amarelo, escova de dentes,
papel de embrulho, rio sem foz,
búzio adejante,
chave de fendas, manteiga, mel.

Em vez de canivete suíço, o mais completo,
uso poema, Manoel, teu antes de tudo inutensílio,
poema todo serviço, remédio santo
contra dor, resfriado, picada de insecto,

poema pedra, ponte, rouxinol,
vento, veia, vício vário,
árvore no deserto, relógio de sol,
joelho feminino para um triste solitário.


JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
Repórter do coração



voz: Cristina Paiva

música: Saint-Saëns por Maria Kliegel

sonoplastia: Fernando Ladeira

Os meus amigos andam perdidos




Os meus amigos andam perdidos
um pouco por toda a parte.
De Lausanne ao Rio é o vasto mundo
dos desencontros, os mesmos que
de Naxos a Londres e de Manhattan ao Cabo
animam exílios vários.

Andam em diáspora os meus amigos.
Une-os, porventura, a mesma nostalgia.

Feridas antigas hipotecadas
ao futuro.


EDUARDO PITTA
O futuro em anos-luz
100 anos.100 poetas. 100 poemas
selecção e organização valter hugo mãe



voz: Cristina Paiva

música: Trentemoller

sonoplastia: Fernando Ladeira

Histórias do país de Helena




Havia marinheiros
No país de Helena
Que morriam ao pôr-do-sol

E havia Helena que sonhava
Fazer um dia tranças às ondas
E um berço muito grande para o mar


DANIEL FARIA
Oxálida
obra incluída em Poesia Daniel Faria


voz: Cristina Paiva

música: Pantha du Prince

sonoplastia: Fernando Ladeira

Café do molhe




Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

porquê a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.

MANUEL ANTÓNIO PINA
Todas as Palavras, poesia reunida
Edição: Assírio & Alvim


voz: Cristina Paiva

música: Egberto Gismonti

sonoplastia: Fernando Ladeira

Soneto contra as pesporrências




É favor não pedirem a esta poesia
que faça o jeito às alegadas tendências
do tempo nem às vãs experiências
que sempre a deixaram de mão fria

o que iria bem mas mesmo bem seria
num jornal a coluna das ocorrências
as coisas da vida mais que as pesporrências
editoriais do comentador do dia

o que vai mal com ela são as petulâncias
de que se vestem muitas redundâncias
dando-se públicos ares de sabedoria

que o leitor farto das arrogâncias
magistrais troca por outras instâncias
onde pode mandá-las pra casa da tia

FERNANDO ASSIS PACHECO
A Musa Irregular


voz: Cristina Paiva

música: Erik Satie

sonoplastia: Fernando Ladeira

és / ás




és ar /serás fumo

és água /serás terra

és pedra /serás areia


DANIEL ABRUNHEIRO
http://canildodaniel.blogspot.com/


voz: Cristina Paiva

música: Savvas Ysatis + Taylor Deupree

sonoplastia: Fernando Ladeira

Sem Amor




Viver sem amor
É como não ter para onde ir
Em nenhum lugar
Encontrar casa ou mundo.

É contemplar o não-acontecer
O lugar onde tudo já não é
Onde tudo se transforma
No recinto
De onde tudo se mudou.

Sem amor andamos errantes
De nós mesmos desconhecidos

Descobrimos que nunca se tem ninguém
Além de nós próprios
E nem isso se tem.

ANA HATHERLY
A Neo-Penélope


voz: Cristina Paiva

música: Nils Frahm

sonoplastia: Fernando Ladeira

A Pátria, de olhos sem fundo...




A Pátria, de olhos sem fundo como dois buracos,
vela o teu corpo e põe-te uma promessa nas mãos frias ...
- tu que foste a força dos fracos,
Tu que foste maior que todas as poesias.
Tu, puro e oculto como as cisternas de água,
tu que eras presente e invisível como a aragem,
tu que continuas a ligar-nos pela mágoa
como sempre o fizeste pela coragem
...

Largos versos irrompem do teu silêncio de granito,
e tu vives inteiro em cada grito,
tu que foste maior que todas as poesias

SIDÓNIO MURALHA
Companheira dos homens


voz: Cristina Paiva

música: Durutti Column

sonoplastia: Fernando Ladeira

Oiro




O dia acende
o teu olhar
e não te deixa
adormecer
sem que essa luz
seja cravada
pelo punhal
do sol
na eternidade,
halo breve
e doirado
como o poema.

CARLOS DE OLIVEIRA
Trabalho Poético


voz: Cristina Paiva

música: Bleeding Heart Narrative

sonoplastia: Fernando Ladeira

O poeta




O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas quanto,
quanto mais variados!

As horas do dia e as quatro estações,
um tanto menos de sol ou mais de vento,
são o devaneio, o acompanhamento
sempre diverso para suas paixões,
sempre as mesmas; e o tempo que faz,
ao levantar-se, eis o grande acontecimento
do dia, sua alegria assim que desperta.
Nada como as luzes contrárias o alegra,
nada como os belos dias
movimentados,
e em longas histórias multidões imersas,
onde o azul e a tempestade duram pouco,
onde se alternam searas de infortúnio
e de vitória.
Com um rubro crepúsculo se entusiasma;
e com as nuvens muda de cor,
ainda que lhe não mude a alma.
O poeta tem os seus dias
contados,
como todos os homens; mas quanto,
quanto mais abençoados!

UMBERTO SABA
Revista Colóquio Letras

TraduçãO: David Mourão-Ferreira

música: Eberhard Weber

Esteiros (excerto)




Linda música – exclamou Gaitinhas. (...) Fazia-o esquecer a doença da mãe e os sapatos rotos. O cavalo galopava no espaço, através das estrelas, e ele levava um sorriso nos lábios (...)
Gineto fizera-se Tom Mix em pensamento e cravara esporas no cavalo, a que chamou Malacara. Dentes cerrados e o lenço ondulando ao vento, cingia nos braços a pálida Rosete, arrebatada aos bandidos. O cavalo saltava muros e esteiros, sem parar. E o Malesso, o Saguí e todos os companheiros do telhaI acenavam ao longe, muito ao longe ...
O carrossel parou. Mas a alegria da viagem ficou ainda a bailar nos olhos de Gineto e nos lábios do Gaitinhas.

SOEIRO PEREIRA GOMES
Obra Completa


voz: Cristina Paiva

música: Durutti Collumn

sonoplastia: Fernando Ladeira