Poema pouco original do medo
O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos
O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles
Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados
Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)
O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
sim
a ratos
ALEXANDRE O´NEILL
Poesias Completas
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Soneto de Natal
Um homem, - era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, -
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,
Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.
Escolheu o soneto... A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca
A pena não acode ao gesto seu.
E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”
MACHADO DE ASSIS
Ocidentais
voz - Cristina Paiva
música - O Holy Night - Jim Brickman - piano
sonoplastia - Fernando Ladeira
Um songo
Aquele homem falava com as árvores e com as águas
ao jeito que namorasse.
Todos os dias
ele arrumava as tardes para os lírios dormirem.
Usava um velho regador para molhar todas as
manhãs os rios e as árvores da beira.
Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos
pássaros.
A gente acreditava por alto.
Assistira certa vez um caracol vegetar-se
na pedra
mas não levou susto.
Porque estudara antes sobre os fósseis linguísticos
e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis
vegetados em pedras.
Era muito encontrável isso naquele tempo.
Até pedra criava rabo!
A natureza era inocente.
P.S:
Escrever em Absurdez faz causa para poesia
Eu falo e escrevo Absurdez.
Me sinto emancipado.
MANOEL DE BARROS
Inédito
Música - Penguin Cafe Orchestra
Voz - Cristina Paiva
Sonoplastia - Fernando Ladeira
Tempo de poesia
Todo o tempo é de poesia.
Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.
Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.
Todo o tempo é de poesia.
Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas que a amar se consagram.
Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia.
António Gedeão
Obra poética
Música - Naked City
Voz - Cristina Paiva
Sonoplastia - Fernando Ladeira
Exercício espiritual
É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem
É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora
Mário Cesariny de Vasconcelos
Manual de Prestidigitação
voz - Carlos do Rosário
música - Ennio Morricone
sonoplastia - Fernando Ladeira
Notícia de última hora:
Um suspiro atirou-se de um balcão, numa casa de Lisboa!
Fendeu o ar,
Qual pluma verde e azul de um pavão...
E aninhou-se, suavemente,
Nos braços de um ser
Que cá em baixo o esperava...
Pensa-se ser um acto propositado,
Ditado pelo amor,
Graça constante do afecto...
Caminharam os dois na direcção do rio,
Só isso sabem dois pombos,
Únicas testemunhas deste acto tresloucado...
E quem souber do paradeiro destes dois sentidos,
Por favor guarde bem essa informação!
Nunca se deve dizer onde pára o amor...
Tal facto só se deve sentir...
E quando passarem por este balcão,
Vejam bem!
Reparem se nenhum suspiro vem voando
E se aninhe nos vossos braços...
Qual pluma verde e azul de um pavão...
Amadora, 2004
JOÃO CASTELA CRAVO
voz - Cristina Paiva
música - Bill Laswell / Gaetano Donizetti
L'Elisir d'Amore (Una furtiva lagrima)
sonoplastia - Fernando Ladeira
Ausência
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Mar Novo
voz - Cristina Paiva
música - Goran Bregovic
sonoplastia - Fernando Ladeira
Maria
Aquela que se põe à janela em qualquer madrugada,
É aquela que eu mais quero ouvir cantar
Nas noites de trovoada.
Talvez porque a sua pele
Me lembra algo de tão suave
Como o mel.
Ou talvez porque os seus cabelos
Pretos como o tudo no nada,
Me fazem citar sonetos.
E talvez porque os seus olhos,
De tons verdes e esverdeados
Conseguem controlar e ressuscitar os meus sonhos.
Ou porque simplesmente,
É ela que nas noites de trovoada
Consegue com o seu canto reluzente
Transformar aquele medo numa linda madrugada.
LIA COELHO VOHLGEMUTH
voz - Cristina Paiva
música - Björk
sonoplastia - Fernando Ladeira
Outro testamento
Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.
Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.
Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.
Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.
Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.
Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.
Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.
VITORINO NEMÉSIO
voz - Cristina Paiva
música - Dirty Three
sonoplastia - Fernando Ladeira
A luz prodigiosa (excerto)
(...) abria um dos seus livros e lia umas quantas páginas. Continuava a ser incapaz de as entender ou de tirar partido delas, mas não me importava, porque não era isso que procurava, mas a estimulante sensação que a leitura produzia em mim: imaginava que avançávamos os dois contra a corrente num pequeno barco a remos. Desde há muito tempo que ele não podia remar e que só dependíamos de mim para seguir adiante e impedir que a corrente nos arrastasse. Mas às vezes as minhas forças fraquejavam e então ele, da sua posição na popa do barco, incutia-me a única força de que era capaz: fazia-me ler o texto de alguma das suas páginas – ou sussurava-o ele próprio na minha imaginação, a partir do silêncio das letras impressas – e produzia-se o milagroso efeito que me permitia continuar a remar, aguentando pelos dois a luta contra a corrente. (...)
FERNANDO MARÍAS
A luz prodigiosa
tradução - Helena Serrano
voz - Cristina Paiva
música - Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
De uma poesia...
De uma poesia esperam tanta cousa!
E logo desesperam,
se não ousa.
Mas a poesia nada tem com isso.
Ela não diz nem faz,
nem está sequer ao teu ou meu serviço.
Serão visões da paz,
aquilo que ela traz:
mas quanta guerra para falar nisso!
Uma só coisa ela terá, se for
(e espera ou desespera,
conforme o meu, o teu, o nosso amor):
Inverno ou Primavera,
e sempre uma outra dor.
JORGE DE SENA
Jorge de Sena por Eugénio Lisboa
voz - Cristina Paiva
música - Stephan Micus
sonoplastia - Fernando Ladeira
Poema à boca fechada
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
JOSÉ SARAMAGO
Os poemas possíveis
voz - Cristina Paiva
música - Eleni Karaindrou
sonoplastia - Fernando Ladeira
Grammatica Rudimentar
Aquelle Manuel do Rego
É rapaz de tanto tino
Que em lirio põe sempre y grego,
E em lyra põe i latino!
E como a gente diz ceia
Escreve sempre ceiar;
Assim como de passeia
Tira o verbo passeiar!
Nunca diz senão peior
Não só por ser mais bonito,
Mas porque achou num auctor
Que deriva de sanskrito.
Escreve razão com s,
E escreve Brasil com z:
Assim elle nos quizesse
Dizer a razão porquê!
Também como diz - eu soube
Julga que eu poude é correcto:
Temo que a morte nos roube
Rapazinho tão discreto!
É um gramático o Rego!
É um purista o finorio...
Se Camões fallava grego,
E o Vieira latinorio!
JOÃO DE DEUS
Campo de flores
voz - Cristina Paiva
música - Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
A nau luareta
Baixou a Lua,
caiu ao mar,
passou um barco
a navegar.
E o barco
olhou
a Lua,
e de espanto
encalhou.
Vieram os marinheiros,
da ré para a proa,
da proa para a ré,
e todos diziam:
- É a Lua! É!
Veio o capitão,
e gritou:
- Não é, não é!
É o meu boné
que caiu ao mar!
E continuava a gritar:
- Quem o vai salvar?
Veio o grumete
e gritou:
- Não é a Lua, não!
É uma sereia
branca de espuma...
E os marujinhos gritaram:
- Que ideia! Que ideia!
Tem cada uma!
Veio o cozinheiro,
e gritou:
- Não é a Lua, não,
mas um peixe
redondo,
como nunca vi,
chato como uma pá.
E os marujinhos
gritaram:
- Será? Será?
E depois
veio uma menina,
não se sabe de onde,
nem para onde ia,
ninguém a conhecia,
ninguém, ninguém,
nem quem seria
seu pai,
sua mãe,
e disse:
- É a Lua! É a Lua!
E os marujinhos gritaram
à uma:
- É a Lua! É a Lua!
É a verdade nua!
É a verdade nua!
E o capitão ordenou:
- Que ninguém se afoite!
É navegar! É navegar!
Já caiu a noite!
E o capitão
foi
para a coberta,
de cabeça
descoberta.
E o grumete
foi
para bombordo.
E os marujinhos,
todos
para
estibordo.
O cozinheiro,
para a cozinha.
E a menina
desapareceu,
sozinha.
MATILDE ROSA ARAÚJO
A guitarra da boneca
voz - Cristina Paiva
música: Art Hickmans Orchestra
sonoplastia - Fernando Ladeira
História do Senhor Mar
Era uma vez
O senhor Mar
Com uma onda...
Com muita onda...
E depois?
E depois...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
Ondinha vai...
Ondinha vem...
E depois...
A menina adormeceu
Nos braços da sua Mãe...
MATILDE ROSA ARAÚJO
O Livro da Tila
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
O mundo é grande
O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Amar se Aprende Amando
voz - Cristina Paiva
música - Ryuichi Sakamoto
sonoplastia - Fernando Ladeira
Os peixes
Dormem numa cama de algas
entre rochas e corais
só não podem bronzear-se
na extensão dos areais
Porque peixes fora de água
não conseguem respirar
mexem as guelras depressa
e voltam logo ao mar
Os peixes de muitas cores
das águas fundas dos mares
sabem por ovos fresquinhos
com peixes aos milhares (...)
JOSÉ JORGE LETRIA
Letra de uma canção escrita para o programa de televisão "A Arca de Noé"
voz - Cristina Paiva
música - Lemon Jelly
sonoplastia - Fernando Ladeira
Os apanhadores de conquilhas
Uma família inteira
a apanhar conquilhas
É o pai é a mãe
é os filhos é as filhas
todos acocorados
na sôfrega função
O gotejar do tempo
é coisa que angustia
se não conduz a nada
se não enche vasilha
por isso esta família
sente que cumpre o dia
se ouvir dentro do plástico
o gluglu da conquilha
E eu que sempre apanhei
conchas mas sem miolo
neste imenso areal
desde os confins da infância
tenho que me render
ao triste desconsolo:
até estas gaivotas
só andam à ganância:
cada vez que mergulham
trazem peixe no bico!
E pensar que cantei
a esbelta liberdade
de suas brancas asas !
Por hoje aqui me fico
sofrendo em solidão
esta crua verdade:
Não há gestos gratuitos
por mais que diga ou faça
famílias ou gaivotas
a cada um seu isco
em serviço ou em férias
nenhum voo é de graça
só entendem o mar
se produzir marisco
Mas e eu que faço eu
a pé por estas ilhas
com ar de quem levou
uma pedrada na asa
senão catar também
umas tristes conquilhas
estas rimas forçadas
que vou levar para casa?!
TERESA RITA LOPES
voz - Cristina Paiva
música - Fridge
sonoplastia - Fernando Ladeira
A caminhada
Nessa mata ninguém mata
a pata que vive ali,
com duas patas de pata,
pata acolá, pata aqui.
Pata que gosta de matas
visita as matas vizinhas,
com as suas duas patas
seguidas de dez patinhas.
E cada patinha tem,
como a pata lá da mata,
duas patinhas também
que são patinhas de pata
SIDÓNIO MURALHA
A dança dos pica-paus
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira
Curiosidades estéticas
O mais importante na vida
É ser-se criador - criar beleza.
Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.
Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir uma voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.
Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.
E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.
ANTÓNIO BOTTO
Canções
voz - Cristina Paiva
música - Laurie Anderson
sonoplastia - Fernando Ladeira
Viagens com o Charley (excerto)
(...) Quando eu era muito novo e sentia em mim o impulso irreprimível de estar em qualquer outro sítio, foi-me assegurado por pessoas de idade madura que a maturidade curaria este desejo ardente. Quando os anos me indicavam como amadurecido, o remédio prescrito foi a meia-idade. Na meia-idade, asseguraram-me que uns anos mais acalmariam a minha febre, e agora, que tenho cinquenta e oito, talvez a senilidade o consiga. Nada surtiu efeito. Quatro sopros roufenhos do apito de um navio ainda arrepiam o cabelo da minha nuca e põem os meus pés a sapatear. O som de um avião de jacto, de um motor a aquecer, até o bater de cascos ferrados no pavimento, provocam o antigo estremeção, a boca seca e o olhar vago, o calor das palmas das mãos e a agitação violenta do estômago, aos pulos sob a caixa das costelas. Por outras palavras, não melhoro, ou, indo mais longe, quem foi vadio é sempre vadio. Receio que a doença seja incurável. (...)
JOHN STEINBECK
Viagens com o Charley
tradução - Sousa Victorino
voz - Cristina Paiva
música - Kraftwerk por Alexander Balanescu
sonoplastia - Fernando Ladeira
Nova York num Poeta (excerto)
Senhoras e senhores:
Quando falo à frente de muitas pessoas parece-me sempre que errei na porta. Mãos amigas empurraram-me, e aqui estou. Metade das pessoas vive perdida entre cenários, árvores pintadas, fontes de lata e, quando julga que encontrou o seu quarto ou um círculo de morno sol, encontra-se com um caimão que a engole ou... com o público, como eu neste momento. E hoje não tenho mais espectáculo além de uma poesia amarga, mas viva, que julgo capaz de abrir os olhos à força de chicotadas que lhe dei. (...)
De qualquer forma, há que ser claro. Hoje não venho aqui para vos entreter. Nem quero, nem me importa, nem tenho vontade. Melhor dizendo, vim lutar. Lutar corpo a corpo com uma massa tranquila, pois o que vou fazer não é uma conferência, é uma leitura de poesias, carne minha, alegria minha e sentimento meu, e preciso de me defender deste enorme dragão que tenho à frente, que me pode comer com os trezentos bocejos das suas trezentas cabeças defraudadas. E a luta é esta; quero veementemente comunicar convosco já que vim, já que estou aqui, já que saio um instante do meu grande silêncio poético e não quero dar-vos mel, porque o não tenho, apenas areia, ou cicuta, ou água salgada. Luta corpo a corpo onde me não importa ser vencido.
Quando falo à frente de muitas pessoas parece-me sempre que errei na porta. Mãos amigas empurraram-me, e aqui estou. Metade das pessoas vive perdida entre cenários, árvores pintadas, fontes de lata e, quando julga que encontrou o seu quarto ou um círculo de morno sol, encontra-se com um caimão que a engole ou... com o público, como eu neste momento. E hoje não tenho mais espectáculo além de uma poesia amarga, mas viva, que julgo capaz de abrir os olhos à força de chicotadas que lhe dei. (...)
De qualquer forma, há que ser claro. Hoje não venho aqui para vos entreter. Nem quero, nem me importa, nem tenho vontade. Melhor dizendo, vim lutar. Lutar corpo a corpo com uma massa tranquila, pois o que vou fazer não é uma conferência, é uma leitura de poesias, carne minha, alegria minha e sentimento meu, e preciso de me defender deste enorme dragão que tenho à frente, que me pode comer com os trezentos bocejos das suas trezentas cabeças defraudadas. E a luta é esta; quero veementemente comunicar convosco já que vim, já que estou aqui, já que saio um instante do meu grande silêncio poético e não quero dar-vos mel, porque o não tenho, apenas areia, ou cicuta, ou água salgada. Luta corpo a corpo onde me não importa ser vencido.
FEDERICO GARCIA LORCA
de Lorca Nova York num Poeta
tradução - António Moura
voz - Cristina Paiva
música - Scott Joplin
piano - Joaquim Coelho
Aurora boreal
Tenho quarenta janelas
nas paredes do meu quarto.
Sem vidros nem bambinelas
posso ver através delas
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do Sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa,
e o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio
a que se chama poesia,
e a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade,
e o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo,
todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra
nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar!
Com tanta janela aberta
falta-me a luz e o ar.
ANTÓNIO GEDEÃO
Obra Poética
voz - Cristina Paiva
música - Penguin Cafe Orchestra
sonoplastia - Fernando Ladeira
Outono
Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados dizendo aos pais que era uma árvore.
Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.
Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.
Mas os pais disseram olha é outono.
Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.
Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.
Mas os pais disseram olha é outono.
RUSSELL EDSON
O Túnel
tradução de José Alberto Oliveira
voz - Cristina Paiva
música - Ry Cooder
sonoplastia - Fernando Ladeira
Semiologia
Digo: o amor. Há palavras que parecem sólidas,
ao contrário de outras que se desfazem nos dedos.
Solidão. Ou ainda: medo. As palavras, podemos
escolhê-las, metê-las dentro do poema como
se fosse uma caixa. Mas não escondê-las. Elas
ficam no ar, invisíveis, como se não precisassem
dos sons com que as dizemos.
NUNO JÚDICE
Poesia reunida 1967-2000
voz - Cristina Paiva
música - Sétima Legião
sonoplastia - Fernando Ladeira
como me querem?
como me querem?
de frente, não?
talvez de lado.
de frente não fico bem
nota-se mais a tristeza
funda que sobre as coisas
deita o meu olhar parado
então está assente:
para não perturbar a paz dos dias
fico de lado como um disfarce
nessa penumbra da gente
que não tem onde agarrar-se
MARIA COSTA
voz - Cristina Paiva
música - Les Nouvelles Polyphonies Courses / John Cale
sonoplastia - Fernando Ladeira
Arte poética V
Na minha infância, antes de saber ler, ouvi recitar e aprendi de cor um antigo poema tradicional português, chamado Nau Catrineta. Tive assim a sorte de começar pela tradição oral, a sorte de conhecer o poema antes de conhecer a literatura.
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas - coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:
Eu era de facto tão nova que nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram consubstanciais ao universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste mundo dito por ele próprio.
Pensava também que, se conseguisse ficar completamente imóvel e muda em certos lugares mágicos do jardim, eu conseguiria ouvir um desses poemas que o próprio ar continha em si.
No fundo, toda a minha vida tentei escrever esse poema imanente. E aqueles momentos de silêncio no fundo do jardim ensinaram-me, muito tempo mais tarde, que não há poesia sem silêncio, sem que se tenha criado o vazio e a despersonalização.
Um dia em Epidauro – aproveitando o sossego deixado pelo horário do almoço dos turistas - coloquei-me no centro do teatro e disse em voz alta o princípio de um poema. E ouvi, no instante seguinte, lá no alto, a minha própria voz, livre, desligada de mim.
Tempos depois, escrevi estes três versos:
A voz sobe os últimos degraus
Oiço a palavra alada impessoal
Que reconheço por não ser já minha.
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
de Ilhas
voz - Cristina Paiva
Porto Sudão (excerto)
(...) porque creio que as palavras são também uma questão corporal:
é com todo o peso do busto, dos ombros, das ancas, é com a rapidez das pernas
e dos braços, a nervosa agilidade dos tornozelos, dos punhos, do pescoço,
é com o que o sexo acrescenta de sério e ao mesmo tempo de infinitamente jovial
a toda esta máquina que as experimentamos: lutando com elas.(...)
OLIVIER ROLIN
de Porto Sudão
voz - Cristina Paiva
música - This Mortal Coil
sonoplastia - Fernando Ladeira
Os diferentes
Descobriu-se na Oceania, mais precisamente na ilha de Ossevaolep, um povo primitivo, que anda de cabeça para baixo e tem vida organizada. É aparentemente um povo feliz, de cabeça muito sólida e mãos reforçadas. Vendo tudo ao contrário, não perde tempo, entretanto, em refutar a visão normal do mundo. E o que eles dizem com os pés dá impressão de serem coisas aladas, cheias de sabedoria. Uma comissão de cientistas europeus e americanos estuda a linguagem desses homens e mulheres, não tendo chegado ainda a conclusões publicáveis. Alguns professores tentaram imitar esses nativos e foram recolhidos ao hospital da ilha. Os cabecentes-para-baixo, como foram denominados à falta de melhor classificação, têm vida longa e desconhecem a gripe e a depressão.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
A cor de cada um
voz - Cristina Paiva
música - Pascal Comelade
sonoplastia - Fernando Ladeira
Sísifo
Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.
MIGUEL TORGA
Antologia Poética
voz - Cristina Paiva
música - Ry Cooder
sonoplastia - Fernando Ladeira
quem tem olhos...
quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina
sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma
(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)
acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim
e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás
um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos
acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando
VIVIANE MOSÉ
voz - Cristina Paiva
música - Aerospace e Funki Porcini
sonoplastia - Fernando Ladeira
Sorriso
E eis que o sorriso dela iluminou a praça. E as gentes que passavam. E os pombos que pararam de asas abertas no céu rasgado de nuvens brancas.
E a água das fontes congelou. O tempo...parou.
E a cidade desconcertada, saiu para rua, pulando e gritando recados de amor, oferecendo beijos ternos como nunca até este dia tinham sido oferecidos.
E o mundo ouviu falar daquela cidade encantada. Daquela praça iluminada.
E da mulher... que assim sorriu.
MARGARIDA DINIZ
voz - Cristina Paiva
música - Virginia Astley
sonoplastia - Fernando Ladeira
Carta nº 25 (excerto)
Uma palavra morre, quando dita,
Pretendem alguns -
Eu digo que começa a viver
Nesse dia.
EMILY DICKINSON
Bilhetinhos com poemas
voz - Cristina Paiva
música - Virginia Astley
sonoplastia - Fernando Ladeira
Na biblioteca
O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre
demasiadamente tarde,
quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,
em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,
as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.
Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.
MANUEL ANTÓNIO PINA
Cuidados intensivos
Edição: Edições Afrontamento
voz - Cristina Paiva
música - Hector Zazou
sonoplastia - Fernando Ladeira
A mulher e a casa
Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.
Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,
uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.
Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;
pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;
pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,
os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,
exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Veneno antimonotonia
Os melhores poemas e canções contra o tédio
voz - Cristina Paiva
música - Miles Davis
sonoplastia - Fernando Ladeira
Coloca uma palavra
Coloca uma palavra
no vale da minha nudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.
INGEBORG BACHMANN
O Tempo Aprazado
Tradução de Judite Berkemeier e João Barrento
voz - Cristina Paiva
música - Múm
sonoplastia - Fernando Ladeira
Rondel do Alentejo
Em minarete
Mate
Bate
Leve
Verde neve
Minuete
De luar.
Meia-noite
Do Segredo
No penedo
Duma noite
De luar.
Olhos caros
De Morgada
Enfeitava
Com preparos
De luar.
Rompem fogo
Pandeiretas
Morenitas,
Bailam tetas
E bonitas,
Bailam chitas
E jaquetas,
São de fitas
Desafogo
De luar.
Voa o xaile
Andorinha
Pelo baile,
E a vida
Doentinha
E a ermida
Ao luar.
Laçarote
Escarlate
De cocote
Alegria
De Maria
La-ri-rate
Em folia
De luar.
Giram pés
Giram passos
Girassóis
Os bonés,
Os braços
estes dois
iram laços
o luar.
Colete
Esta virgem
Endoidece
Como o S
Do foguete
Em vertigem de luar.
Em minarete
Mate
Bate
Leve
Verde Neve
Minuete
De luar.
ALMADA NEGREIROS
voz - Cristina Paiva
música - Penguin Cafe Orchestra
sonoplastia - Fernando Ladeira
Nasci para administrar o à-toa...
Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma
rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei
também sabedoria mineral.
MANOEL DE BARROS
Livro sobre o nada
voz - Cristina Paiva
música - Joaquim Coelho
sonoplastia - Fernando Ladeira
Matéria solar
3
Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.
Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.
Do fundo do tempo,
martelava.
Contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.
EUGÉNIO DE ANDRADE
Matéria solar
voz - Cristina Paiva
música - Hector Zazou
sonoplastia - Fernando Ladeira
Não quero, não
Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.
Quero um cavalo só meu,
seja baio ou alazão,
sentir o vento na cara,
sentir a rédea na mão.
Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.
Não quero muito do mundo:
quero saber-lhe a razão,
sentir-me dono de mim,
ao resto dizer que não.
Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.
EUGÉNIO DE ANDRADE
Aquela Nuvem e Outras
voz - Cristina Paiva
música - W. A. Mozart
piano - Klára Wurtz
sonoplastia - Fernando Ladeira
Um livro
Um livro
Apenas uma coisa entre outras coisas
Mas também uma arma. Foi forjada
Na Inglaterra, em 1604,
E carregada com um sonho. Encerra
O som, a fúria, a noite e o escarlate.
A minha mão sopesa-a. Quem diria
Que contém o inferno: essas barbudas
Bruxas que são as parcas, os punhais
Que executam as duras leis da sombra
O delicado ar desse castelo
Que te verá morrer, a delicada
Mão que é capaz de ensanguentar os mares,
O clamor e a espada da batalha.
Esse tumulto silencioso dorme
No espaço de um só livro, na tranquila
Prateleira da estante. Dorme e espera.
JORGE LUIS BORGES
História da noite
tradução - Fernando Pinto do Amaral
voz - Cristina Paiva
música - Clint Mansell
sonoplastia - Fernando Ladeira
Se numa noite de Inverno um viajante (excerto)
"Foi logo na montra da livraria que descobriste a capa com o título que procuravas. Atrás desta pista visual, lá foste abrindo caminho pela loja dentro através da barreira cerrada dos Livros Que Não Leste, que de cenho franzido te olhavam das mesas e das estantes procurando intimidar-te. Mas tu sabes que não te deves deixar assustar, que no meio deles se estendem por hectares e hectares os Livros Que Podes Passar Sem Ler, os Livros Feitos Para Outros Usos Para Além Da Leitura, os Livros Já Lidos Sem Ser Preciso Sequer Abri-los Por Pertencerem À Categoria Do Já Lido Ainda Antes De Ser Escrito. E assim transpões a primeira muralha de baluartes e cai-te em cima a infantaria dos Livros Que Se Tivesses Mais Vidas Para Viver Certamente Lerias Também De Bom Grado Mas Infelizmente Os Dias Que Tens Para Viver São Os Que Tens Contados. Com um movimento rápido passas por cima deles e vais parar ao meio das falanges dos Livros Que Tens Intenção De Ler Mas Antes Deverias Ler Outros, dos Livros Demasiado Caros Que Podes Esperar Comprar Quando Forem Vendidos Em Saldo, dos Livros Idem Idem Aspas Aspas Quando Forem Reeditados Em Formato De Bolso, dos Livros Que Podes Pedir A Alguém Que Te Empreste e dos Livros Que Todos Leram E Portanto É Quase Como Se Também Os Tivesses Lido. Escapando a estes assaltos diante das torres de reduto, onde se te opõem resistência
os Livros Que Há Muito Programaste Ler,
os Livros Que Há Anos Procuravas Sem Os Encontrares,
os Livros Que Tratam De Alguma Coisa De Que Te Ocupas Neste Momento,
os Livros Que Queres Ter Para Estarem À Mão Em Qualquer Circunstância,
os Livros Que Poderias Pôr De Lado Para Leres Se Calhar Este Verão,
os Livros Que Te Faltam Para Pores Ao Lado De Outros Livros Na Tua Estante,
os Livros Que Te Inspiram Uma Curiosidade Repentina, Frenética E Não Claramente Justificada.
E lá conseguiste reduzir o número ilimitado das forças em campo a um conjunto sem dúvida ainda muito grande mas já calculável num número finito, mesmo que este relativo alívio seja atacado pelas emboscadas dos Livros Lidos Há Tanto Tempo Que Já Seria Altura De Voltar A Lê-los e dos Livros Que Dizes Que Leste e Seria Altura De Te Decidires A Lê-los Mesmo."
ITALO CALVINO
Se numa noite de Inverno um viajante
tradução - José Colaço Barreiros
voz - Cristina Paiva
música - Vicente Gallo
sonoplastia - Fernando Ladeira