Alentejo
Junta o rio e seu advérbio: nasce um país, com homens, vinho, um pão difícil.
Tenta pronunciar a palavra como se de uma planície se tratasse; depois a terra interminável, a água na sua escassez. E também o sol e o amarelo da terra, entre um arco-íris de ocres e castanhos, dispostos com rigor na tela do Verão.
No alto de um pequeno monte, no centro da palavra, descobrirás então outra cor. A forma será a de uma casa coberta de cal. Pronuncia a cor como se a visses pela primeira vez e como se, ao pronunciá-la, o mundo recomeçasse.
JOÃO PEDRO MÉSSEDER
Ordem Alfabética
Quasi Edições
voz - Cristina Paiva
música – Dinis Costa
sonoplastia - Fernando Ladeira
ilustração - Susa Monteiro
Participação em leitura colectiva: 5 bibliotecários do Alentejo:
Isabel Martins, José Eduardo Biscainho, Maria Paula Santos, Eduarda Marques, Nuno Bentes
Realizado para:
“Nossa Língua - Nosso Chão”
projecto da Direção-Regional de Cultura do Alentejo
em parceria com a Chão Nosso, Crl e Andante Associação Artística
O terrorista… olha
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezasseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.
O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A esta distância ficará livre de perigo
e, quanto a vista, é como no cinema:
Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos escuros… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezassete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.
Treze horas, dezassete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.
Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.
Treze e dezanove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.
São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode.
WISLAWA SZYMBORSKA
Paisagem com grão de areia
Ed. Relógio d’Água
tradução - Júlio Sousa Gomes
voz - Cristina Paiva
música – Sétima Legião
sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira
O gato e a vespa
O gato foi à escola
enquanto os poetas dormiam.
O gato foi ao leite e ao presunto
enquanto a vespa azucrinava
por ali sob o olhar de um grifo
que pairava.
Enquanto os poetas dormiam.
Vai-te embora, vespa, diz o gato,
deixa estar a neve sossegada dentro
da taça e não faças barulho,
deixa os poetas dormir.
Não é neve, diz o grifo, é uma nêspera,
está sentada ao colo de uma velha,
foi um poeta da cidade* que deixou escrito.
Ora, uma nêspera, exclama a vespa,
é mas é um pêssego. Ai é, responde o gato,
vamos ver.
Enquanto os poetas dormiam.
O grifo rondava a escola como um corvo
em cima de um comboio e gostava de ouvir
o gato a comer o presunto devagar, olhando
para o leite. A vespa zumbia, zumbia como
um tractor e ria-se. Olha que isto é uma escola,
diz o gato, e a escola não é para vespas.
Enquanto os poetas dormiam.
Até que vem a aurora, coberta de chuva,
acordar os poetas e os galos ao mesmo tempo.
Mas o gato insiste, cuidado ó vespa,
ainda cais no leite, olha que os poetas
escrevem palavras que dançam
nas praias douradas, deixa-os dormir.
A vespa não quis saber. Pensava que tinha
o mundo todo a seus pés, o ar, as nuvens,
as pessoas, as colinas, o rio, as bibliotecas,
os barcos. Mas era um pensamento falso,
um engano. Caiu na taça de leite e morreu.
É o que acontece às vespas que chamam
pêssegos às nêsperas.
* O poeta da cidade é Mário Henrique-Leiria “Contos do Gin-Tonic”
que escreveu um poema sobre uma velha que comeu uma nêspera.
JAIME ROCHA
É absolutamente certo nº 9 (Jornal de Poesia)
Edição: Biblioteca Municipal José Baptista Martins de Vila Velha de Ródão
voz - Cristina Paiva
música – The Cure
sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira
ilustração: Elisa Aragão
Quando isto um dia passar
Quando isto um dia passar
– se passar –
havemos de esquecer
– se esquecermos –
havemos de nos lembrar
– se lembrarmos –
e havemos de continuar a viver
– se vivermos –
o presente de então,
e havemos de continuar
– se continuarmos –
a conjugar certos verbos no futuro,
ingenuamente,
como crianças em idade
de errar e de acertar.
JOÃO PEDRO MÉSSEDER
19-3-2020
voz - Cristina Paiva
música – Ólafur Arnalds
sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Antologia Poética
Publicações Dom Quixote
voz - Cristina Paiva
música – Johann Johannsson
sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira