A salvação do mundo



Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo.
O poema não pode ter mais do que uma casa, paredes
caiadas de branco, os azulejos a rebaterem o sol contra
a sombra, dizendo-llne o seu lugar. O poema é o meu pai

em sofrimento na cama do hospital, as mãos inúteis que
lhe afagam a dor, estas mãos tão inúteis percorrendo os
versos ao som das palavras. O poema é circunstância de lugar

em imagens atiradas ao chão, reduz à sombra o sol. A casa
essencial, a do poema, memória e salvação de um homem.
O mundo é útil de poesia. Todos os versos são possíveis.


JORGE REIS-SÁ
de Biologia do Homem, Ed. Quasi

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Autopsicografia



O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama um coração.

FERNANDO PESSOA
de Poesia do Eu, Ed. Assírio e Alvim

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Esta janela vai dar àquela ...



Esta janela vai dar àquela
janela se o sistema for compatível
e a drive funcionar.
Clicando aqui um outro mundo acede,
com milhares de milhões de sítios a explorar.
Navegando procuro esse destino
onde seja possível voltar a encontrar
o lugar do repouso que no labirinto houve
e o teu rosto por certo procurou.
A luz que me cegar e me chegar
do écran luminoso talvez diga
que o incerto paradeiro em que te encontras
é mais que o prolongamento da ausência
em que te vi na derradeira vez.
O olhar liquefeito sob os ferros.

AMADEU BAPTISTA
de Apeadeiro – Revista de atitudes literárias
Ed. Quasi

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Camões, grande Camões



Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co'o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

BOCAGE
de Obras Escolhidas, Ed. Círculo de Leitores

voz - Cristina Paiva

música - Carlos Paredes

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Flashback




No verão, à noite, as nuvens de mosquitos
caíam sobre as casas. Eu via-os, de volta
das lâmpadas, formando uma névoa agitada
pelo brilho fraco da electricidade. Vinham
dos arrozais, dos pântanos, dos rios estagnados
pelo calor; mas nunca soube para onde iam
quando, passada a noite, a madrugada surgia
limpa e branca, como as casas da aldeia.

Nesse verão, muitas coisas se passaram:
alguns velhos morreram; começaram as obras
na igreja, e as lages com inscrições antigas
deram lugar a um chão de madeira; o
cinema ambulante trouxe alguns filmes
de capa e espada, mas o rapaz salvou-se
sempre; e uma máquina fotográfica registou
os andores que traziam à rua os santos,
na festa de agosto, de mistura com rostos
que julgava esquecidos na minha memória.
(Só o padre, segurando o cálice, mantém a
mesma expressão dura e atenta, como convém
ao representante de deus entre os homens).

Há quem diga que esses verões acabaram. De
facto, as casas já não precisam de mosquiteiros,
o cinema ambulante acabou, e o padre limita-
-se a ser o nome de uma rua, e qualquer dia
já nem isso. Mas quando as luzes se acendem,
ainda com dia, é como se uma névoa surgisse
do passado, com os mosquitos, as falhas
na corrente quando o filme ia a meio, e os
gritos que dávamos no escuro, até a luz voltar.


NUNO JÚDICE
Poesia reunida


voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Meu menino ino, ino


Dos versos que exprimem,
Estou cansado!

Das palavras que explicam,
Estou cansado!

Dos gestos que explodem,
Estou cansado!

Ai, embala-me, fútil, e frágil, no ó-ó dos teus versos,
Ai, encosta-me ao peito...!

Mais não quero que ser embalado.

JOSÉ RÉGIO
de As encruzilhadas de Deus, Ed. Presença-Atlântida

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Quadra




Mais longe estás se houve início
mais perto se o tempo finda
e a rosa que em ti abriu
é em mim botão ainda.

AGOSTINHO DA SILVA
de Quadras inéditas, Ed. Ulmeiro

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

A caminhada




Nessa mata ninguém mata
a pata que vive ali,
com duas patas de pata,
pata acolá, pata aqui.

Pata que gosta de matas
visita as matas vizinhas,
com as suas duas patas
seguidas de dez patinhas.

E cada patinha tem,
como a pata lá da mata,
duas patinhas também
que são patinhas de pata


SIDÓNIO MURALHA
de A dança dos pica-paus


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Guardanapos




Guardanapos       napos        à esquerda quando se começa
guardanapos        napos        desdobrados em cima das coxas
guardanapos        napos        discretos no quente do colo
guardanapos        napos        onde caem migalhas e pingos de sopa
guardanapos        napos        pontuação do passar pelos lábios
guardanapos        napos        hirtos ou fleumáticos
guardanapos        napos        franjas em mãos nervosas
guardanapos!
guardanapos!    que estranha palavra portuguesa!


SALETTE TAVARES
de Antologia da Poesia Experimental Portuguesa, Ed. Angelus Novus

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Maria Almira Soares

Cantiga, partindo-se




Senhora, partem tam tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tam tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
Tam doentes da partida,
Tam cansados, tam chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.

Partem tam tristes os tristes
Tam fora d’esperar bem,
Que nunca tam tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.


JOÃO ROIZ DE CASTELO BRANCO
de Os dias do amor, Ed. Ministério dos livros

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Marreiros

Antigazetilha




No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada –
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela –
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação:
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não –
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...


FERNANDO PESSOA
de Poesia do Eu, Ed. Assírio e Alvim

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Marreiros

pepQ? - Regras / FAQ

Poema escrito por quem?

O que é o “pepQ”?
Um jogo.
Semanalmente publicaremos aqui, em áudio, um poema.
Se nos sobrar tempo poderemos publicar mais do que um por semana :-)
Os poemas são todos de autores portugueses e foram escolhidos segundo critérios pessoais subjectivos.

Como se joga?
O objectivo é identificar os autores dos poemas que publicamos.
Para isso deverá dar a sua resposta aqui no blog, fazendo um comentário no respectivo poema/post.
Não serão aceites respostas via email ou via facebook.
Vencerá quem primeiro publicar a resposta certa.
Cada resposta certa vale 1 ponto*.
O vencedor final será quem somar mais pontos.
Se houver empate... há empate :-)

*se passar uma semana sem que ninguém desvende a autoria de um poema, este passará a valer 2 pontos na 2ª semana, 3 pontos na 3ª semana , etc, até um máximo de 5 pontos.

Quem pode participar?
Qualquer pessoa.
É possível concorrer individualmente ou por equipa.
As equipas deverão ter um nome e todos os jogadores deverão publicar as respostas usando esse mesmo nome.

Qual a duração do jogo?
O jogo tem início no princípio de janeiro e termina no final de dezembro de 2011.

Quando são publicados os poemas?
Semanalmente à segunda-feira, mas pode muito bem dar-se o caso de ser à terça ou extraordinariamente ao domingo ou mesmo...
A hora das publicações será sempre uma surpresa.
Faremos divulgação através da nossa newsletter e do facebook.

Onde e quando são divulgados os resultados?
Aqui e no facebook, sempre que alguém acertar... ou assim que o pudermos fazer :-)

Quais são os prémios?
Tínhamos previsto alguns milhares de euros em prémios, mas como não conseguimos travar a tempo a discussão entre os vários mecenas desta iniciativa, decidimos ser nós os únicos patrocinadores do evento. Assim, os prémios serão:

1º prémio – 3 CDs áudio; um com todos os poemas do concurso, outro com parte dos outros poemas do blog e um terceiro com a gravação áudio do nosso espectáculo “A de Mozart”.
2º prémio – 2 CDs áudio; um com todos os poemas do concurso e outro com parte dos outros poemas do blog.
3º prémio – 1 CD áudio com todos os poemas do concurso

Um pouco mais sobre o pepQ:
A promoção da leitura e a divulgação dos nossos autores sempre foram os nossos objectivos.
O concurso surge de uma conversa entre nós acerca de como reavivarmos este nosso audio.blog, caído um pouco no esquecimento no segundo semestre de 2010 por não termos tido tempo para lhe dedicar.
Quando pensávamos voltar à nossa regularidade de um texto por semana, surgiu-nos a ideia do concurso. A ideia, pelo menos nestes moldes, é original mas provavelmente não teria surgido se não tivéssemos tido conhecimento de um outro concurso com os mesmos objectivos de promoção da leitura, “Lost Pages Club”, que terminou a sua 1ª edição (esperemos que haja outras), no início de dezembro de 2010.

Assim, esta é uma proposta nossa para 2011. Não tem objectivos comerciais. É apenas um jogo com as palavras dos nossos poetas que visa divulgar a nossa poesia. Nenhum autor foi contactado previamente e se algum não desejar fazer parte do concurso, contacte-nos e verá o seu poema imediatamente removido.
Tentaremos cumprir a regularidade das publicações, quer dos poemas, quer das respostas.
Por vezes a produção e realização dos nossos espectáculos ocupa-nos de tal forma que não nos sobra tempo nenhum, por isso, se alguma semana falharmos, aceitem desde já as nossas desculpas.
Críticas e sugestões serão bem vindas.
Divirtam-se!

Cristina Paiva e Fernando Ladeira