Flashback




No verão, à noite, as nuvens de mosquitos
caíam sobre as casas. Eu via-os, de volta
das lâmpadas, formando uma névoa agitada
pelo brilho fraco da electricidade. Vinham
dos arrozais, dos pântanos, dos rios estagnados
pelo calor; mas nunca soube para onde iam
quando, passada a noite, a madrugada surgia
limpa e branca, como as casas da aldeia.

Nesse verão, muitas coisas se passaram:
alguns velhos morreram; começaram as obras
na igreja, e as lages com inscrições antigas
deram lugar a um chão de madeira; o
cinema ambulante trouxe alguns filmes
de capa e espada, mas o rapaz salvou-se
sempre; e uma máquina fotográfica registou
os andores que traziam à rua os santos,
na festa de agosto, de mistura com rostos
que julgava esquecidos na minha memória.
(Só o padre, segurando o cálice, mantém a
mesma expressão dura e atenta, como convém
ao representante de deus entre os homens).

Há quem diga que esses verões acabaram. De
facto, as casas já não precisam de mosquiteiros,
o cinema ambulante acabou, e o padre limita-
-se a ser o nome de uma rua, e qualquer dia
já nem isso. Mas quando as luzes se acendem,
ainda com dia, é como se uma névoa surgisse
do passado, com os mosquitos, as falhas
na corrente quando o filme ia a meio, e os
gritos que dávamos no escuro, até a luz voltar.


NUNO JÚDICE
Poesia reunida


voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

2 comentários: