O Deus das Pequenas Coisas (excerto)
Somos prisioneiros de guerra. Os nossos sonhos foram medicados. Não pertencemos a lugar nenhum. Velejamos sem âncora por mares revoltos. Podemos nunca ter licença para aportar. As nossas dores nunca serão suficientemente tristes. As nossas alegrias nunca suficientemente felizes. Os nossos sonhos nunca suficientemente grandes. As nossas vidas nunca suficientemente importantes. Para importarem. Vamos imaginar que a terra - 4600 milhões de anos de idade – era uma mulher de 46 anos. A Mulher Terra. Toda a sua vida de Mulher-Terra foi dedicada a fazer da terra o que ela é hoje. Dividiu os Oceanos. Fez as montanhas emergir. A Mulher-Terra tinha 11 anos quando surgiram os primeiros organismos unicelulares. Os primeiros animais, criaturas como os vermes e as acalefas, só surgiram quando ela tinha 40 anos. E tinha mais de 45 anos – só há 8 meses – quando os dinossauros deambulavam pela Terra.
Toda a civilização humana tal como a conhecemos, começou apenas há duas horas na vida da Mulher-Terra.
Portanto, toda a história contemporânea, as guerras mundiais, a guerra dos sonhos, o homem na lua, a ciência, a literatura, a filosofia, a busca do conhecimento, mais não são do que uma piscadela de olho da Mulher-Terra.
E nós, tudo o que somos e seremos, é um lampejo nos seus olhos.
Mais tarde, à luz de tudo o que aconteceu, lampejo parecia uma palavra completamente errada para descrever a expressão nos olhos da Mulher-Terra. Lampejo era uma palavra com rebordos ondulantes e felizes.
ARAUNDHATI ROY
O Deus das Pequenas Coisas
voz - Cristina Paiva
música - Jorge Reys
sonoplastia - Fernando Ladeira
excerto do espectáculo Actos de Leitura, gravado ao vivo em 1999
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