O Deus das Pequenas Coisas (excerto)




Somos prisioneiros de guerra. Os nossos sonhos foram medicados. Não pertencemos a lugar nenhum. Velejamos sem âncora por mares revoltos. Podemos nunca ter licença para aportar. As nossas dores nunca serão suficientemente tristes. As nossas alegrias nunca suficientemente felizes. Os nossos sonhos nunca suficientemente grandes. As nossas vidas nunca suficientemente importantes. Para importarem. Vamos imaginar que a terra - 4600 milhões de anos de idade – era uma mulher de 46 anos. A Mulher Terra. Toda a sua vida de Mulher-Terra foi dedicada a fazer da terra o que ela é hoje. Dividiu os Oceanos. Fez as montanhas emergir. A Mulher-Terra tinha 11 anos quando surgiram os primeiros organismos unicelulares. Os primeiros animais, criaturas como os vermes e as acalefas, só surgiram quando ela tinha 40 anos. E tinha mais de 45 anos – só há 8 meses – quando os dinossauros deambulavam pela Terra.
Toda a civilização humana tal como a conhecemos, começou apenas há duas horas na vida da Mulher-Terra.
Portanto, toda a história contemporânea, as guerras mundiais, a guerra dos sonhos, o homem na lua, a ciência, a literatura, a filosofia, a busca do conhecimento, mais não são do que uma piscadela de olho da Mulher-Terra.
E nós, tudo o que somos e seremos, é um lampejo nos seus olhos.

Mais tarde, à luz de tudo o que aconteceu, lampejo parecia uma palavra completamente errada para descrever a expressão nos olhos da Mulher-Terra. Lampejo era uma palavra com rebordos ondulantes e felizes.


ARAUNDHATI ROY
O Deus das Pequenas Coisas


voz - Cristina Paiva

música - Jorge Reys

sonoplastia - Fernando Ladeira


excerto do espectáculo Actos de Leitura, gravado ao vivo em 1999

Tenho uma grande constipação...




Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
Excusez du peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e de aspirina.


ÁLVARO DE CAMPOS
Livro de Versos


voz - Cristina Paiva

música - Tom Waits

sonoplastia - Fernando Ladeira

Litania para este natal




Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Numa casa de Hanói ontem bombardeada

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Tem no ano dois mil a idade de Cristo

Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Vê-lo-emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
E anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia-noite em ponto
Para nos vir pedir contas do nosso tempo

DAVID MOURÃO FERREIRA
Obra poética


voz - Cristina Paiva

música - Penguin Cafe Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

Coisas que não há que há




Uma coisa que me põe triste
é que não exista o que não existe.
(Se é que não existe, e isto é que existe!)
Há tantas coisas bonitas que não há:
coisas que não há, gente que não há,
bichos que já houve e já não há,
livros por ler, coisas por ver,
feitos desfeitos, outros feitos por fazer,
pessoas tão boas ainda por nascer
e outras que morreram há tanto tempo!
Tantas lembranças de que não me lembro,
sítios que não sei, invenções que não invento,
gente de vidro e de vento, países por achar,
paisagens, plantas, jardins de ar,
tudo o que eu nem posso imaginar
porque se o imaginasse já existia
embora num sítio onde só eu ia...

MANUEL ANTÓNIO PINA
O pássaro da cabeça
Edição: Quasi Edições


voz - Cristina Paiva

música - W. A. Mozart (piano - Klára Wurtz)

sonoplastia - Fernando Ladeira

Eu...




Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!…

Sou aquela que passa e ninguém vê…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


FLORBELA ESPANCA
Livro de Mágoas


voz - Cristina Paiva

música - Mike Figgis

sonoplastia - Fernando Ladeira