Diálogo
Nunca pensei num poema como sendo um monólogo que se originou algures no fundo da minha boca ou da minha mão
Um poema coloca-se sempre nas condições de um diálogo virtual
A hipótese de um encontro a hipótese de uma resposta a hipótese de alguém
Mesmo na página: a resposta que a linha supõe, bem como as deslocações, os formatos
Alguma coisa vai sair do silêncio, da pontuação, do branco subir até mim
Alguém vivo, com nome: um poema de amor
Mesmo quando a omissão, a falta de direcção, a direcção pronominal tornam possível essa translação: encontra-se um leitor perante a página, diante da voz do poema como
no instante do seu nascimento
Ou da sua recepção: leitor leitor ou leitor autor
Este poema é-te destinado e nada encontrará
JACQUES ROUBAUD
Sud-Express, poesia francesa de hoje
tradução - Urbano Tavares Rodrigues
voz - Cristina Paiva
música – Test Dept
sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira
fotografia de Jacques Roubaud – Ben Handz
Quando sós à boleia do crepúsculo [para o Fernando Guerreiro]
Não mais a literatura, os seus
fúteis e imperiosos desígnios
- julgamos dizer, insistindo
numa ourivesaria do terror
e em gestos que sabem o quanto
chegam tarde. Quando sós,
à boleia do crepúsculo, dizemos
coisas assim, mentimos com
os dentes todos que não temos.
E a mentira (a literatura)
é ainda a improvável derrota
de que não nos salvaremos
nunca. Tão igual à vida, portanto:
pouso o copo, recupero o fôlego,
fumo uma silepse. Sei que vou morrer.
E isso que - talvez - nos diz
é uma evidência que escurece
(tivemos por amigo o desconforto).
Quanto ao mais, vamos andando.
Casados ou sozinhos. Mortos.
MANUEL DE FREITAS
[SIC]
voz - Cristina Paiva
música – Terje Rypdal
sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira
fotografia de Manuel de Freitas – ?
Os badamecos
Os badamecos
tão engraçados
sujam paredes,
são malcriados.
Andam em férias
como vadios.
Cheiram que fedem,
de mal lavados.
Têm brinquedos,
alguns perigosos,
adquiridos
pelos mais ranhosos.
E quando dormem
o seu soninho,
mijam na rua,
sonham-se grandes.
Nunca se faça
mal aos meninos,
à linda graça
de nós tontinhos.
Que nos lembremos
sempre aos demais:
Casa de filhos,
escola de pais!
RUY CINATTI
Memória Dividida
voz - Cristina Paiva
música – Goran Bregovic
sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira
pintura de Ruy Cinatti - Maluda
ilustração - Laurent Lufroy