Um dia não muito longe não muito perto
Às vezes sabes sinto-me farto
por tudo isto ser sempre assim
Um dia não muito longe não muito perto
um dia não muito normal um dia quotidiano
um dia não é que eu pareça lá muito hirto
entrarás no quarto e chamarás por mim
e digo-te já que tenho pena de não responder
de não sair do meu ar vagamente absorto
farei um esforço parece mas nada a fazer
hás-de dizer que pareço morto
que disparate dizias tu que houve um surto
não sabes de quê não muito perto
e eu sem nada pra te dizer
um pouco farto não muito hirto e vagamente absorto
não muito perto desse tal surto
queres tu ver que hei-de estar morto?
RUY BELO
Todos os poemas
Edição: Assírio & Alvim
Voz - Cristina Paiva
Música - Radicalfashion
Sonoplastia - Fernando Ladeira
A poesia (em Itália)
Desde os alvores do século se discute
se a poesia existe dentro ou fora.
Primeiro venceu o dentro, depois contra-atacou
duramente o fora
e desde há anos se assiste a um empate
que não poderá durar visto que o fora
está armado até aos dentes.
EUGENIO MONTALE
Vozes da poesia Europeia III
Tradução - David Mourão-Ferreira
Voz - Cristina Paiva
Música - Lemongrass
Sonoplastia - Fernando Ladeira
A um homem com um grande nariz
Um homem era a um nariz pegado,
era esse um nariz superlativo,
era esse um alambique meio vivo,
era esse um peixe-espada mal barbado;
um relógio de sol mal encarado,
elefante de tromba em pé, lascivo,
nariz algoz e escriba, punitivo,
um Ovídio Nasão mal narigado.
Era esse o esporão de uma galera,
era esse uma pirâmide do Egipto,
as doze tribos de narizes era;
era esse um narizíssimo infinito,
enorme arquinariz, carranca fera,
inchaço garrafal, purpúreo e frito.
FRANCISCO QUEVEDO
Antologia Poética
Tradução - José Bento
Voz - Cristina Paiva
Música - Aaron Copland
Sonoplastia - Fernando Ladeira
Biografia
Não pegues na colher com a mão esquerda.
Não ponhas os cotovelos na mesa.
Dobra bem o guardanapo.
Isso, para começar.
Extraia a raiz quadrada de três mil trezentos e treze.
Onde fica o Tanganica? Em que ano nasceu Cervantes?
Dou-lhe um zero em comportamento se falar com o seu colega.
Isso, para continuar.
Parece-lhe decente que um engenheiro faça versos?
A cultura é um enfeite e o negócio é o negócio.
Se continuas com essa moça fechamos-te a porta.
Isso, para viver.
Não sejas tão louco. Sê educado. Sê correcto.
Não bebas. Não fumes. Não tussas. Não respires.
Ai, sim, não respirar! Dar o não a todos os nãos.
E descansar: morrer.
GABRIEL CELAYA
Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea
Assírio & Alvim
Tradução - José Bento
Voz - Cristina Paiva
Música - Ketil Bjornstad & David Darling
Sonoplastia - Fernando Ladeira