A máquina do mundo
O Universo é feito essencialmente de coisa nenhuma.
Intervalos, distâncias, buracos, porosidade etérea.
Espaço vazio, em suma.
O resto, é a matéria.
Daí, que este arrepio,
este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
deve ser um intervalo.
ANTÓNIO GEDEÃO
Obra poética
voz - Cristina Paiva
música: And Also The Trees
sonoplastia - Fernando Ladeira
O Limpa - Palavras
Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.
No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.
A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.
ÁLVARO MAGALHÃES
O Limpa-Palavras e Outros Poemas
voz - Cristina Paiva
música - Múm
sonoplastia - Fernando Ladeira
Onde estará esse leitor...
Onde estará esse leitor
Que não soletra nem recita?
Que não tropeça nas imagens
Que não ofende os nossos ritmos
Que não destroi as nossas flores?
Onde estará esse leitor,
Onde estarão esses leitores?
CARLOS QUEIROZ
Breve Tratado de Não-Versificação
voz - Cristina Paiva
Búzio
Trouxeram-me um búzio.
Dentro dele canta
um mar de mapa.
Meu coração
enche-se de água
com peixinhos
de sombra e prata.
Trouxeram-me um búzio.
FEDERICO GARCIA LORCA
Canções
tradução - José Bento
voz - Cristina Paiva
sonoplastia - Fernando Ladeira