Os diferentes




Descobriu-se na Oceania, mais precisamente na ilha de Ossevaolep, um povo primitivo, que anda de cabeça para baixo e tem vida organizada. É aparentemente um povo feliz, de cabeça muito sólida e mãos reforçadas. Vendo tudo ao contrário, não perde tempo, entretanto, em refutar a visão normal do mundo. E o que eles dizem com os pés dá impressão de serem coisas aladas, cheias de sabedoria. Uma comissão de cientistas europeus e americanos estuda a linguagem desses homens e mulheres, não tendo chegado ainda a conclusões publicáveis. Alguns professores tentaram imitar esses nativos e foram recolhidos ao hospital da ilha. Os cabecentes-para-baixo, como foram denominados à falta de melhor classificação, têm vida longa e desconhecem a gripe e a depressão.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
A cor de cada um

voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira

Sísifo




Recomeça...
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar
E vendo,
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças.

MIGUEL TORGA
Antologia Poética

voz - Cristina Paiva

música - Ry Cooder

sonoplastia - Fernando Ladeira

quem tem olhos...




quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina

sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma
(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)
acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim

e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando

VIVIANE MOSÉ

voz - Cristina Paiva

música - Aerospace e Funki Porcini

sonoplastia - Fernando Ladeira

Sorriso




E eis que o sorriso dela iluminou a praça. E as gentes que passavam. E os pombos que pararam de asas abertas no céu rasgado de nuvens brancas.
E a água das fontes congelou. O tempo...parou.
E a cidade desconcertada, saiu para rua, pulando e gritando recados de amor, oferecendo beijos ternos como nunca até este dia tinham sido oferecidos.
E o mundo ouviu falar daquela cidade encantada. Daquela praça iluminada.
E da mulher... que assim sorriu.


MARGARIDA DINIZ


voz - Cristina Paiva

música - Virginia Astley

sonoplastia - Fernando Ladeira

Carta nº 25 (excerto)




Uma palavra morre, quando dita,
Pretendem alguns -
Eu digo que começa a viver
Nesse dia.


EMILY DICKINSON
Bilhetinhos com poemas

voz - Cristina Paiva

música - Virginia Astley

sonoplastia - Fernando Ladeira

Na biblioteca




O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras

diante do poema, que chega sempre
demasiadamente tarde,

quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,

em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,

as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.

Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.



MANUEL ANTÓNIO PINA
Cuidados intensivos
Edição: Edições Afrontamento

voz - Cristina Paiva

música - Hector Zazou

sonoplastia - Fernando Ladeira

A mulher e a casa




Tua sedução é menos
de mulher do que de casa:
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.


JOÃO CABRAL DE MELO NETO
Veneno antimonotonia
Os melhores poemas e canções contra o tédio

voz - Cristina Paiva

música - Miles Davis

sonoplastia - Fernando Ladeira

Coloca uma palavra




Coloca uma palavra
no vale da minha nudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.

INGEBORG BACHMANN
O Tempo Aprazado
Tradução de Judite Berkemeier e João Barrento

voz - Cristina Paiva

música - Múm

sonoplastia - Fernando Ladeira

Rondel do Alentejo




Em minarete
Mate
Bate
Leve
Verde neve
Minuete
De luar.

Meia-noite
Do Segredo
No penedo
Duma noite
De luar.

Olhos caros
De Morgada
Enfeitava
Com preparos
De luar.

Rompem fogo
Pandeiretas
Morenitas,
Bailam tetas

E bonitas,
Bailam chitas
E jaquetas,
São de fitas
Desafogo
De luar.

Voa o xaile
Andorinha
Pelo baile,
E a vida
Doentinha
E a ermida
Ao luar.

Laçarote
Escarlate
De cocote
Alegria
De Maria
La-ri-rate
Em folia
De luar.

Giram pés
Giram passos
Girassóis
Os bonés,
Os braços
estes dois
iram laços
o luar.

Colete
Esta virgem
Endoidece
Como o S
Do foguete
Em vertigem de luar.

Em minarete
Mate
Bate
Leve
Verde Neve
Minuete
De luar.


ALMADA NEGREIROS

voz - Cristina Paiva

música - Penguin Cafe Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

Nasci para administrar o à-toa...




Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
Retiro semelhanças de pessoas com árvores
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma
rã no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei
também sabedoria mineral.


MANOEL DE BARROS
Livro sobre o nada

voz - Cristina Paiva

música - Joaquim Coelho

sonoplastia - Fernando Ladeira

Matéria solar




3

Havia
uma palavra
no escuro.
Minúscula. Ignorada.

Martelava no escuro.
Martelava
no chão da água.

Do fundo do tempo,
martelava.
Contra o muro.
Uma palavra.
No escuro.
Que me chamava.


EUGÉNIO DE ANDRADE
Matéria solar

voz - Cristina Paiva

música - Hector Zazou

sonoplastia - Fernando Ladeira

Não quero, não




Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.

Quero um cavalo só meu,
seja baio ou alazão,
sentir o vento na cara,
sentir a rédea na mão.

Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.

Não quero muito do mundo:
quero saber-lhe a razão,
sentir-me dono de mim,
ao resto dizer que não.

Não quero, não quero, não,
ser soldado nem capitão.


EUGÉNIO DE ANDRADE
Aquela Nuvem e Outras

voz - Cristina Paiva

música - W. A. Mozart

piano - Klára Wurtz

sonoplastia - Fernando Ladeira