Gato





Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?


ALEXANDRE O'NEILL
Poesias completas


voz - Cristina Paiva

música - Vojislav Aralica, Dr. Nelle Karajlic, Dejan Sparavalo

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira

O tigre na rua






Pensei muito: como é que apareceu um tigre na rua?
pensei pensei,
pensei pensei,
pensei pensei,
pensei pensei,
soprou o vento neste momento,
e eu esqueci o pensamento.
Por isso continuo sem saber como é que na rua terá aparecido um tigre.


DANIIL HARMS
O tigre na rua e outros poemas

tradução - Nina e Filipe Guerra


voz - Cristina Paiva

música - Dmitri Shostakovich

ilustrações - Serge Bloch

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira

Gatos





Gatos novos
gatos velhos
gatos magros
gatos gordos
gatos brancos
gatos pretos
gatos mimalhos
gatos a pedir
gatos a roubar
gatos a fugir
gatos a ronronar
gatos no telhado
gatos na janela
gatos no sofá
gatos no berço
gatos na cama
gatos na sala
gatos na cozinha
gatos maltratados
gatos a miar
em noites de luar.

Gatos doentes
gatos a brincar
gatos a dormir
gatos a saltar
gatos a parir
gatos a mamar
gatos a nascer
gatos a arranhar
gatos a comer
gatos a pular
gatos a lamber
gatos lestos
gatos mancos
gatos siameses
gatos persas
gatos malteses.

Tantos gatos
de rabo alçado
e eu só tenho um
de pano coçado.


ANTÓNIO MOTA
Lá de cima cá de baixo
Edições Gailivro


voz - Cristina Paiva

música - Ian Pooley

ilustrações - Teresa Lima

sonoplastia - Fernando Ladeira

Lembranças de Província





Nesse tempo a vida era triste,
a chuva caía devagar, quando não era inverno ainda,
os cafés cheiravam a tabaco e havia, no chão,
beatas e papéis de bolos. Pela porta entreaberta,
às vezes, entrava um cão vadio, que corria as mesas,
e nenhum criado se preocupava a enxotá-lo. Do
lado dos bilhares, ouvia-se o crepitar seco das bolas, e
o virar dos marcadores era acentuado com sólidas pancadas,
que sobressaltavam os leitores de jornais: folhas
mal impressas, com notícias do campo e o registo de vidas
funcionárias, promoções no Registo Civil e na hierarquia da
Câmara, ou mudanças de casa, para onde homens
de escuro subiam os móveis embrulhados
em mantas; depois, despiam-nos em salas de chão de madeira
encerada de novo, por onde o sol ainda entrava livre-
mente. Então, grandes espelhos reflectiam as janelas sem
cortinas; e, se olhasse para o fundo deles, talvez
se visse a imagem de mulheres furtivas, olhando a sua nudez
rápida em vidros limpos de pó. Imagens proibidas, que
só se podiam guardar no fundo de olhos mudos
como os lábios dessas mulheres, quando passavam em frente das
montras do café, sem um sorriso, levando com elas
o que nunca se há-de saber


NUNO JÚDICE
Poesia reunida


voz - Cristina Paiva

música - Bernardo Sassetti

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira