Soneto do soneto



Desata-se-me o verso no primeiro
no segundo de vento vai vestido
no terceiro de mar e marinheiro
no quarto está perdido está perdido.

Recupero-o no quinto sem sentido
no sexto deito-o à sombra de um sobreiro.
No sétimo com Dante digo: «Guido
sê tu no oitavo verso companheiro.»

Porque não espero de voltar no nono
leva-me O´Neill no décimo a um terceto
que aponte já no onze o sul e o sal.

Ao décimo segundo chega o sono.
No treze está a chave do soneto
mas nem sempre o catorze é o final.

MANUEL ALEGRE
de Poesia, Volume II (Sonetos do Obscuro Quê)
Ed. D. Quixote

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Catorze versos



O primeiro é assim: fica de parte.
No segundo já posso prometer
que no terceiro vai haver mais arte.
Mas afinal não houve... Que fazer?

Melhor será calar, pois que dizer
nem no sexto conseguirei destarte.
Os acentos errados é favor nao ver;
nem os versos errados, que também sei hacer...

Ó nono verso porque vais embora
sem que eu te sublime neste décimo?
Ao décimo-primeiro dediquei uma hora.

Errei-o. Mas que importa se a poesia,
mesmo que o não errasse, já não vinha?
É este o último e, como os outros, péssimo...

ALEXANDRE O'NEILL
de Alexandre O'Neill – Poesias Completas, Abandono Vigiado
Ed. Assírio e Alvim

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

A tempo



A tempo entrei no tempo,
Sem tempo dele sairei:
Homem moderno,
Antigo serei.
Evito o inferno
Contra tempo, eterno
À paz que visei.
Com mais tempo
Terei tempo:
No fim dos tempos serei
Como quem se salva a tempo.
E, entretanto, durei.

VITORINO NEMÉSIO
de Vitorino Nemésio, Boletim Cultural, VII Série, Dezembro de 1992,
Ed. Fundação Calouste Gulbenkian

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Todas as cartas de amor são ridículas



Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

ÁLVARO DE CAMPOS
de Poesia dos outros Eus,
Ed. Assírio e Alvim

voz - Cristina Paiva

música - Funki Porcini

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

O amor em linguagem de computador (versão 2)



Percorro com os dedos o teclado
e acaricio nele a tua pele
que imagino morena e macia.

Envolvo com o olhar o monitor aceso
e procuro aí os teus olhos
que suponho escuros e ardentes.

Passeio com o rato no tapete
e sinto os teus lábios no meu corpo,
vagarosamente deslizando
e deixando nele o sabor que imagino em ti.

MARIA CARLOS LOUREIRO
de Acasos e Mistérios
Quetzal Editores

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Legenda



Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas

Só necessito que tu existas

DAVID MOURÃO-FERREIRA
de David Mourão-Ferreira, Serviço de Bibliotecas e apoio à leitura
Ed. Fundação Calouste Gulbenkian

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Soneto quebrado




Já um gesto mais teu apazigua
o campo largo, a terra sossegada.
Grita uma ave no mar. Um quase nada
Aguentará, logo, nos céus, a Lua.

A meus olhos pesados se insinua
A presença dos anos desejada.
É já, no casto amor, curva fechada
A minha longa espera unida à tua.

Demora a Primavera a quem semeia,
O Verão faz palha de umas ervas verdes.
Perde quem pesca os passos pela areia.

Tudo o que nunca havíamos de ter des-
faz a lenta e aérea tessitura.
Nossa alma é breve. Poesia pura.

VITORINO NEMÉSIO
de Boletim Cultural, VII Série, Dezembro de 1992, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Canção infantil



Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder.

EUGÉNIO DE ANDRADE
de Poesia – Eugénio de Andrade, Primeiros Poemas, Ed. Fundação Eugénio de Andrade

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira