Sonho de uma terça feira gorda




Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros, e negras eram as nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas!
E a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro e luminoso!

Era terça feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingénuas, ao gosto popular, em cores cruas.

Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes – Vénus para caixeiros.
Figuravam deusas – deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.

A turba, ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade.
O ar lúgubre, negros, negros ...
Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
A profunda, a silenciosa alegria ...


MANUEL BANDEIRA
Antologia


voz - Cristina Paiva

música - Armandinho

sonoplastia - Fernando Ladeira

Um pequeno-almoço histórico




Um homem aproxima uma chávena de café da cara, inclina-a para a boca. É histórico, pensa. Ele coça a cabeça: outro acontecimento histórico. Devia era descansar, está a produzir uma quantidade imensa de história logo de manhã.
Credo, agora está a barrar torradas com manteiga, outro bocado de história a fazer-se.
Ele espanta-se por ter-lhe sido destinado ser tão histórico. Outros provavelmente não o têm, pensa, é, ao fim e ao cabo, um talento.
Ele pensa que um dos seus atacadores precisa de ser apertado. Ah bom, mais um acontecimento histórico importante que está para acontecer. Não o pode evitar. Estará talvez a ocupar uma faixa demasiado grande de história? Mas tem que viver, não tem? As torradas necessitam de manteiga e ele não pode andar por aí com um dos atacadores desapertados, pois não?
É certamente verdade, que quando escreverem todo o século XX será principalmente acerca dele. É a forma como o bolo se esmigalha - ah, aí está uma frase que será citada nos séculos vindouros.
Convencido? Um pouco; como pode evitá-lo observado por todos os olhos ainda por nascer do futuro?
Oh, oh, sente outro acontecimento histórico a chegar... Ah, ai está, uma chávena de café a aproximar-se da cara na ponta do seu braço. Se conseguissem registar isso em filme, quanta importância não teria para o futuro.
Bolas, derramou-o todo no colo. Um desses acidentes históricos que influenciarão os próximos mil anos; imprevisível e até muito desconfortável... Mas a história nunca é fácil, pensa ele...


RUSSELL EDSON
O túnel

tradução - José Alberto Oliveira


voz - Cristina Paiva

música - Carl Orff

sonoplastia - Fernando Ladeira

Os mistérios de um telhado (excerto)




(...) Tanta gente! tantos os que nos falam e nos apertam as mãos; tantos os que nos segredam uma palavra inútil, uma frase lisonjeira... e nem uma amizade sincera, nem um raio dessa outra amizade sublime, a que chamam o amor!

Amor, sim! Amor, que é a alma da nossa alma, a vida da nossa vida, flor maravilhosa, que a terra roubou ao Paraíso. Eu creio em duas alavancas que movem todos os interesses e que miram todas as aspirações: O dinheiro e o amor. Dinheiro! ideal dos ambiciosos da matéria... Amor! ideal dos ambiciosos do sentimento... (...)


WENCESLAU DE MORAES
Os mistérios de um telhado


voz - Cristina Paiva

música - And Also The Trees

sonoplastia - Fernando Ladeira

Congresso Internacional do Medo




Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Antologia poética


voz - Cristina Paiva

música: Yann Tiersen

sonoplastia - Fernando Ladeira