Sobre uma poesia sem pureza (excerto)




(...)
Assim seja a poesia que procuramos,
gasta como um ácido pelos deveres da mão,
penetrada pelo suor e o fumo,
rescendente a urina e a açucena,
salpicada pelas diversas profissões
que se exercem dentro e fora da lei.
Uma poesia impura como um fato,
como um corpo,
com manchas de nutrição,
e atitudes vergonhosas,
como rugas, observações, sonhos, vigílias, profecias,
declarações de amor e de ódios,
bestas, abanões, idílios,
crenças políticas, dúvidas,
afirmações, imposições.
A sagrada lei do madrigal
e os decretos do tacto, olfacto, gosto, vista, ouvido,
o desejo de justiça, o desejo sexual,
o ruído do oceano,
sem excluir deliberadamente nada,

(sem aceitar deliberadamente nada,)

a entrada na profundidade das coisas
num acto de arrebatado amor,
e o produto poesia manchado de pombas digitais,
com marcas de dentes e gelo,
roído talvez levemente pelo suor e o uso.
Até alcançar essa doce superfície do instrumento tocado sem descanso,
essa suavidade duríssima da madeira manejada,
do orgulhoso ferro.
A flor, o trigo, a água
têm também essa consistência especial,
esse recurso de um magnífico tacto.
(...)


PABLO NERUDA
Sobre una poesía sin pureza

Tradução - José Bento


voz - Cristina Paiva

música: David Sylvian

sonoplastia - Fernando Ladeira

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