Gigões e Anantes




Gigões são anantes muito grandes.
Anantes são gigões muito pequenos.
Os gigões diferem dos anantes porque
uns são um bocado mais outros são um bocado menos.

Era uma vez um gigão tão grande, tão grande,
que não cabia. – Em quê? – O gigão era tão grande
que nem se sabia em que é que ele não cabia!
Mas havia um anante ainda maior que o gigão,
e esse nem se sabia se ele cabia ou não.

Só havia uma maneira de os distinguir:
era chegar ao pé deles e perguntar:
Mas eram tão grandes que não se podia lá chegar!
E nunca se sabia se estavam a mentir!

Então a Ana como não podia
resolver o problema arranjou uma teoria:
xixanava com eles e o que ficava
xubiante ou ximbimpante era o gigão,
e o anante fingia que não.

A teoria nunca falhava porque era toda
com palavras que só a Ana sabia.
E como eram palavras de toda a confiança
só queriam dizer o que a Ana queria.


MANUEL ANTÓNIO PINA
O Têpluquê e outras histórias
Edição: Porto Editora


voz - Cristina Paiva

música: Múm

sonoplastia - Fernando Ladeira

Sobre uma poesia sem pureza (excerto)




(...)
Assim seja a poesia que procuramos,
gasta como um ácido pelos deveres da mão,
penetrada pelo suor e o fumo,
rescendente a urina e a açucena,
salpicada pelas diversas profissões
que se exercem dentro e fora da lei.
Uma poesia impura como um fato,
como um corpo,
com manchas de nutrição,
e atitudes vergonhosas,
como rugas, observações, sonhos, vigílias, profecias,
declarações de amor e de ódios,
bestas, abanões, idílios,
crenças políticas, dúvidas,
afirmações, imposições.
A sagrada lei do madrigal
e os decretos do tacto, olfacto, gosto, vista, ouvido,
o desejo de justiça, o desejo sexual,
o ruído do oceano,
sem excluir deliberadamente nada,

(sem aceitar deliberadamente nada,)

a entrada na profundidade das coisas
num acto de arrebatado amor,
e o produto poesia manchado de pombas digitais,
com marcas de dentes e gelo,
roído talvez levemente pelo suor e o uso.
Até alcançar essa doce superfície do instrumento tocado sem descanso,
essa suavidade duríssima da madeira manejada,
do orgulhoso ferro.
A flor, o trigo, a água
têm também essa consistência especial,
esse recurso de um magnífico tacto.
(...)


PABLO NERUDA
Sobre una poesía sin pureza

Tradução - José Bento


voz - Cristina Paiva

música: David Sylvian

sonoplastia - Fernando Ladeira

Impressão digital




Os meus olhos são uns olhos,
e é com esses olhos uns
que eu vejo no mundo escolhos,
onde outros, com outros olhos,
não vêem escolhos nenhuns.

Quem diz escolhos, diz flores!
De tudo o mesmo se diz!
Onde uns vêem luto e dores,
uns outros descobrem cores
do mais formoso matiz.

Pelas ruas e estradas
onde passa tanta gente,
uns vêem pedras pisadas,
mas outros gnomos e fadas
num halo resplandecente!!

Inútil seguir vizinhos,
querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos!
Onde Sancho vê moinhos,
D.Quixote vê gigantes.

Vê moinhos? São moinhos!
Vê gigantes? São gigantes!


ANTÓNIO GEDEÃO
Obra Poética


voz - Cristina Paiva

música: Funki Porcini

sonoplastia - Fernando Ladeira

Interrogação




Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso crê! Nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno…
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo…
Eu não sei que mudança a minha alma pressente…
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.


CAMILO PESSANHA
Clepsidra


voz - Cristina Paiva

música: Stephan Micus

sonoplastia - Fernando Ladeira

Paraíso




Deixa ficar comigo a madrugada,
Para que a luz do sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
Deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
Onde eu ouça o estertor de uma gaivota…
Crepite, em derredor, o mar de Agosto…
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
Que acendas, para tudo ser perfeito,
À cabeceira a luz do teu joelho,
Entre os lençois o lume do teu peito…

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.


DAVID MOURÃO-FERREIRA
Obra Poética


voz - Cristina Paiva

música: Stephan Micus

sonoplastia - Fernando Ladeira