Maria




Aquela que se põe à janela em qualquer madrugada,
É aquela que eu mais quero ouvir cantar
Nas noites de trovoada.

Talvez porque a sua pele
Me lembra algo de tão suave
Como o mel.

Ou talvez porque os seus cabelos
Pretos como o tudo no nada,
Me fazem citar sonetos.

E talvez porque os seus olhos,
De tons verdes e esverdeados
Conseguem controlar e ressuscitar os meus sonhos.

Ou porque simplesmente,
É ela que nas noites de trovoada
Consegue com o seu canto reluzente
Transformar aquele medo numa linda madrugada.


LIA COELHO VOHLGEMUTH


voz - Cristina Paiva

música - Björk

sonoplastia - Fernando Ladeira

Outro testamento




Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.


VITORINO NEMÉSIO


voz - Cristina Paiva

música - Dirty Three

sonoplastia - Fernando Ladeira

A luz prodigiosa (excerto)




(...) abria um dos seus livros e lia umas quantas páginas. Continuava a ser incapaz de as entender ou de tirar partido delas, mas não me importava, porque não era isso que procurava, mas a estimulante sensação que a leitura produzia em mim: imaginava que avançávamos os dois contra a corrente num pequeno barco a remos. Desde há muito tempo que ele não podia remar e que só dependíamos de mim para seguir adiante e impedir que a corrente nos arrastasse. Mas às vezes as minhas forças fraquejavam e então ele, da sua posição na popa do barco, incutia-me a única força de que era capaz: fazia-me ler o texto de alguma das suas páginas – ou sussurava-o ele próprio na minha imaginação, a partir do silêncio das letras impressas – e produzia-se o milagroso efeito que me permitia continuar a remar, aguentando pelos dois a luta contra a corrente. (...)


FERNANDO MARÍAS
A luz prodigiosa

tradução - Helena Serrano


voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira

De uma poesia...





De uma poesia esperam tanta cousa!
E logo desesperam,
se não ousa.

Mas a poesia nada tem com isso.
Ela não diz nem faz,
nem está sequer ao teu ou meu serviço.
Serão visões da paz,
aquilo que ela traz:
mas quanta guerra para falar nisso!

Uma só coisa ela terá, se for
(e espera ou desespera,
conforme o meu, o teu, o nosso amor):
Inverno ou Primavera,
e sempre uma outra dor.


JORGE DE SENA
Jorge de Sena por Eugénio Lisboa


voz - Cristina Paiva

música - Stephan Micus

sonoplastia - Fernando Ladeira